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Quando eu voltar a ser criança

Quando me sinto muito cansada de ser gente grande, quando perco as medidas do que é ser gente grande, lembro do título de um livro do sensível educador que foi Janusz Korczak, “Quando eu voltar a ser criança”. Agarro-me a essa ideia e, em vez de me sentir mais segura, pergunto-me se estaria mesmo protegida das dores do mundo diminuindo de tamanho, se seria respeitada na minha individualidade, com pleno direito de viver as minhas fantasias de criança.

Se eu voltasse a ser criança, gostaria, em primeiríssimo lugar, que me vissem como uma pessoa. Um ser humano que fica triste, que fica alegre, que adora algumas pessoas e não vai com a cara de outras, que tem medo, que mente, que diz a verdade, que gosta de beijo e abraço, que não suporta espinafre, que suspira por gelatina com leite condensado, que às vezes não tem fome na hora do almoço e que sente dor quando leva uma palmada.

Sente tudo o que gente grande sente, com a diferença de que não disfarça sentimentos. Quando eu voltar a ser criança, quero que os adultos à minha vota não tentem me enganar dizendo que espinafre é ótimo, mas não colocam no próprio prato. Que entendam meu medo de escuro e que não queiram me convencer que não tem bicho-papão no quarto se eles, às vezes, se apavoram com os bichos-papões que têm na cabeça e também não conseguem dormir, acendem a luz e vão ler, fumar, comer ou chorar. Ou tudo isso junto…

Vou ver se consigo que os adultos não riam dos meus ídolos e não tentem desmascarar seus incríveis poderes e forças, pois eles também se emocionam e se encantam com ídolos que cantam, interpretam, jogan, fazem adivinhações, escrevem e outras peripécias. Que parem, de uma vez por todas, de dizer que homem não chora, que isso é coisa de menina…

Outras coisas que eu gostaria que respeitassem quando eu voltar a ser criança. Os meus tesouros, por exemplo. Aqueles que a gente vai encontrando pelas esquinas e guardando em bolsos, sacolinhas, gavetas e caixinhas. São aquelas pedrinhas, engrenagens de brinquedos, pedaços de barbante, tampinhas de garrafa, conchinhas de um piquenique na praia, pregos, a máscara de um super-heroi esfolado de tantas aventuras, pedaço do gesso ‘daquele braço que eu quebrei quando eu era pequeno’… Afinal, adulto coleciona xícaras, corujas, elefantes, objetos de arte e coloca tudo bem à mostra para as visitas admirarem… Por que não poderei eu ter meus ‘objetos de arte’?

Talvez seja querer muito, mas quando eu voltar a ser criança, gostaria que os adultos tivessem mais tempo para mim, para curtir momentos comigo. Assim, eles não precisariam dizer com aquele cara e quem perdeu o trem (da vida): “aproveita enquanto seu filho é pequeno, porque essa fase passa tão depressa!” Passa depressa porque os adultos passam muito depressa pela gente e quando nos descobrem já temos barba.

Janusz Korczak, em seu livro, abre um espaço para o seu eu-criança dizer: “Não gostamos de contar nossas coisas aos adultos, talvez porque eles estão sempre com pressa quando falamos com eles. Sempre parece que não estão interessados, que vão responder qualquer coisa para se verem livres logo. Está certo: eles têm seus problemas importantes e nós, os nossos. De nosso lado, esforçamo-nos em dizer tudo em poucas palavras, para não aborrecê-los. Como se o nosso assunto fosse de pouca importância, que pode ser resolvido com um simples sim ou não deles”.

Quando eu voltar a ser criança quero encontrar a criança que cada adulto traz dentro de si, às vezes tão trancafiada que nem ele sabe que existe. E que acredite: criança sabe ouvir e seus bracinhos se agigantam para acolher um adulto perdido de si mesmo.

(Texto publicado originalmente em outubro/1987 e aqui editado – Fotos Pixabay)

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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