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A história de amor e dor de Júlia e Antônia

Amar sem doer? Que mostre o coração aquele que abraçou de corpo inteiro, que misturou tanto “as nossas pernas” e saiu ileso quando a festa acabou… E o que seria dos escritores, poetas, artistas se tudo desse sempre certo entre os amantes? Eu mesma teria uma lista de filmes para indicar, mas quero trazer para cá um longa nacional lançado em 2010 (atualmente só em boas locadoras ou no YouTube, embora no site oficial anuncie também no Netflix, mas não encontrei),  cujo comentário publicado me dá, até hoje, muito prazer de ler, muito orgulho de haver escrito. O filme Como Esquecer, de Malu de Martino, traz uma história atemporal e que se perpetua não apenas por falar de amor e dor, mas porque vem embalado pela interpretação irretocável de Ana Paula Arósio, a atriz que sumiu das telas e deixou como lembrança mais que um rosto lindo. Outra razão para gostar tanto desse texto, que agora recupero e publico na íntegra, é que a página com meu comentário, quando publicada no Jornal A Tribuna, foi inserida no blog oficial do filme e lá está, para quem quiser conferir: https://www.flickr.com/photos/comoesquecer/sets/72157624274913667/

Como esquecer o que um dia foi amor?

É curioso que o título do filme Como Esquecer não tenha interrogação. É uma constatação ante o inexorável que se instala quando o amor é sequestrado pela dor.

O amor que vai embora não deixa vazio apenas o lugar no porta-retrato, ou esquecido o roupão no armário, ou sem calor um lado da cama. O amor que vai embora deixa, impiedosamente palpável, a dor grudada na pele, fechando os poros e antecipando a morte em vida. Pergunte a quem perdeu a metade adorada e terá, como resposta, va- riações que traduzem esse despedir-se interminável da vi- da que teima e não se esvai.

Quando Júlia Serrano (Ana Paula Arósio, no filme Como Esquecer) queima a fotografia onde um dia sorriu ao lado de Antônia, e esmaga com a mão o resto em brasa do amor abortado, ela traduz assim a tal da dor. E como dor não comporta generosidade, não vai consumir Júlia ali e acabar com sua agonia. Há de se arrastar, sem trégua. Toma o lugar de Antônia e se torna a companheira que Júlia nunca convidou para caminhar com ela.

Invade as aulas de literatura que a professora Júlia dá na universidade, põe no seu colo a lata de biscoitos que ela come anestesiada diante da televisão e lhe dá o braço quando, em flashback, é arrebatada pelas lembranças do tempo em que a felicidade brincava de ser eterna, com uma Antônia que se adivinha segurando a filmadora para Júlia rir, rolar pelo chão e disputar beleza com as flores.

O filme Como Esquecer, de Malu de Martino, não é sobre a relação homoafetiva de Júlia e Antônia, mas sobre os fragmentos que nos tornamos quando a porta bate e por ela não voltará o nosso amor. E Ana Paula Arósio sabe dizer isso muito bem, vivendo com maturidade a dor da personagem, que ela legitima num elogiável trabalho de interpretação.

O rosto sem um traço de maquiagem, a boca seca e sem batom, o cabelo tão descuidado quanto a alma carente da sua Júlia dão à jovem atriz uma estatura que o público ainda não conhecia.

Ana Paula leva com dignidade os farrapos da Júlia que precisa se colocar de novo em movimento. A chama de vida que ainda a alimenta é fugidia como brisa e é esse fiapo que a faz contemplar o revólver, extasiada ante o possível. Mas, numa compreensão simples e precisa, Júlia tem consciência de que “o contrário do amor é o estado permanente de perplexidade”. Perplexa, ela não faz a menor ideia de como esquecer. Alguém sabe?

Se em cada canto da casa tem a imagem e o cheiro de Antônia, melhor assentar a dor em outro lugar. Até porque, sem a parceira para dividir as despesas do apartamento, a realidade fica concreta demais. O amigo Hugo (Murilo Rosa, que não acerta a medida do personagem, com uma afetação desnecessária) encontra uma casa na Praia de Guaratiba e é para lá que vão os três: ele, fechando o luto do namorado morto há um ano; ela, com seu cadáver insepulto, e a amiga de ambos, Lisa, outra apaixonada (e grávida) que em algum momento experimenta o gosto travoso de ser deixada pelo namorado. Um aborto ‘resolve’ a questão e põe em frangalhos seu equilíbrio. Como na vida, cada um tem seu fantasma e o carregamos sozinhos.

Que ninguém se recuse a ver o filme por entender que ele aborda uma temática gay. Não. Malu de Martino focou sua história nesse enredo que acompanha a história humana: amores desfeitos são o que são, não importa quem tem que juntar os cacos. Amores desfeitos nos tornam patéticos, amargos como Júlia a dizer ao amigo “prefiro sofrer do meu jeito do que do seu”.

É sofrendo que ela vai para Guaratiba, ser mal-humorada lá, debochada e fria. No entanto, a dor que a anestesia é a mesma que a desafia, que arrepia seu corpo sob o chuveiro, querendo de novo estremecer de prazer. Corpo que se contorce não pela onda convulsiva do orgasmo, mas porque o animal dentro dela já não uiva. Chora, apenas.

Como bicho ferido quer mais é se guardar num canto, a chegada de Helena (Arieta Corrêa, atriz que honra sua breve passagem pelo filme), com sua leveza e total desapego, acua Júlia ainda mais e ela não economiza aspereza, grosseria e aquele fel que se fabrica naturalmente dentro dela. Helena é o alvo do veneno, mas Helena pode agitar as águas paradas de Júlia como o vento que encrespa as ondas do mar de Guaratiba. Helena é o símbolo daquela primeira página em branco que todos nós, um dia desembarcados em plena tormenta do abandono, temos chance de voltar a escrever.

Escrever, sim. Esquecer…Como?

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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