“Dor e glória” reconcilia Almodóvar com o céu e a terra
O pequeno Santiago, os pais, a pobreza, o espírito indomável
Por mais fama, riqueza (ou curtidas nas redes sociais) que tenha o indivíduo, ele nada será se dentro dele a paz não fizer morada. É assim que penso, e imagino que cada um tenha a sua receita do que é estar em paz. A minha espelha-se em uma profunda reflexão de Masaharu Taniguchi, fundador da Seicho-No-Ie, ensinamento que persigo desde que li pela primeira vez, lá pelos anos 1980. “Reconcilia-te com as coisas do céu e da terra. Quando todo o Universo se tornar teu amigo, coisa alguma do Universo poderá causar-te dano”, propõe Taniguchi na introdução do seu pensamento.
Dor e glória, o filme que traz de volta o espanhol Pedro Almodóvar, deixa claro que passar a vida a limpo é uma exigência para reconciliarmo-nos com as coisas do céu e da terra. Exuberante e intenso como sempre foi, uma vez mais se traduzindo (mais comedido) nas cores com que ele pinta o mundo, Almodóvar se mostra do avesso na pele de Salvador Mallo (Antonio Banderas, irrepreensível, tocante). Pressionado por dores no corpo marcado (inclusive por cicatrizes) e na alma, cansado das noites insones, impotente ante os fantasmas que lhe fazem companhia, Salvador terá que amarrar as pontas soltas da sua história, essa coisa que na velhice fica a nos fazer cócegas na cara. Como ignorar?
É longo o caminho entre o céu e a terra, e para vencer a distância, há que, primeiro, passar pelo inferno e tomar um trago com o demônio. No caso, Salvador prefere experimentar heroína e nisso parece se aproximar de quem um dia ele negou, criticou, diminuiu: o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia, estupendo!), protagonista que ele dirigiu em Sabor, 30 anos atrás, e com quem não fala desde então, mas que não lhe nega a estreia com a droga. Mesmo se recusando a aceitar o convite de uma cinemateca de Madri para falar sobre Sabor, seu primeiro sucesso, o reencontro com Crespo o empurra para o encontro com um Salvador que está quase entregando os pontos.
Sem as dores que a heroína afugenta, Salvador passeia pelas lembranças. Reencontra o menino que foi, em Valencia, sob as rédeas de Jacinta (Penélope Cruz), a mãe enérgica, mas que quer o melhor para o pequeno. E o melhor é estudar, é sair da pobreza de morar na caverna, é ir para o seminário (único jeito de um pobre estudar, diz ela), coisa que nem passa pela cabeça do menino que até já sabe ler. É lá, entre as paredes caiadas de branco, que o pequeno e inocente Salvador descobre que o corpo de um homem (o pedreiro que está fazendo uns serviços na cozinha) pode ser belo. Lembranças, paixões, desejos, conflitos que agora compõem Vício, um texto que Salvador arquivou e Alberto quer encenar. Catarse que traz à tona o alucinado romance de juventude entre Salvador e Federico (o argentino Leonardo Sbaraglia), outro rascunho para passar a limpo, embora não se reescreva, na vida real, nem a dor, nem a glória, nem o amor abortado.
Se quer mesmo reconciliar-se com as coisas do céu e da terra, Salvador ainda tem que passar por Jacinta (na velhice, Julieta Serrano), tem ainda que se reparar por “não ter sido o filho que você queria que eu fosse”. Na travessia para a redenção do que fizemos com a vida depois do que a vida fez conosco, a conversa mais difícil parece ser mesmo essa. Não apenas a do filho que não pudemos ser, mas também a da mãe que não pudemos ter.
Há um outro pensador, M. de Combi, que desenha um mapa singular para esta reconciliação com o céu e a terra. Diz ele: “Algum dia, em algum lugar, indefectivelmente, hás de encontrar-te contigo mesmo. E só depende de ti que seja a mais amarga das tuas horas ou o teu melhor momento”. Ouso dizer que para chegar ao melhor momento de nós mesmos há que, necessariamente, viver a mais amarga das horas. Pedro Almodóvar, com a arte e a coragem de Dor e glória, é um guia em quem se pode confiar para fazer as pazes com nossas faces marcadas a ferro e fogo. Então, elas já não poderão mais nos causar danos.