Blog

Em nome do Pai ainda se acendem fogueiras

A intolerância religiosa já causou (e causa) muito estrago na história da humanidade. O que fez a Inquisição, na Idade Média, com sua caça às bruxas, repercutirá sempre  no inconsciente coletivo. E os bons diretores, claro, se inspiram nessas  práticas de trevas e usam o mote dos santos tribunais para realizar filmes instigantes, em produções que, não raro, nos incomodam e acendem fogueiras simbólicas.

Foi assim com A Fita Branca (do tarimbado Michael Haneke/2009), que beira o insuportável com aquele pastor punindo os filhos pelos pecados cometidos, obrigando-os a usar a tal fita branca. Assim também com Pecado da Carne (do israelense Haim Tabakman/2010), em que a paixão homossexual entre dois judeus ortodoxos une a comunidade em agressões, perseguições, constrangimentos, até o desfecho desconcertante, irremediável. Nada acaba bem nesses filmes, onde os acontecimentos caminham quase que naturalmente para a tragédia, porque diante de certos julgamentos qualquer argumento já nasce condenado.  A coisa também desanda em Além das Montanhas,  uma obra com que o diretor romeno Cristian Mungiu provoca a discussão sobre a submissão de mulheres às leis de uma igreja que pode penitenciar a pecadora com a morte, amém.

Alina e Voichita se reencontram muitos anos depois de terem saído do orfanato onde cresceram juntas. O abraço que trocam, na estação de trem, pelo menos por parte de Alina,deixa claro que a saudade tem um drama, um furor, que Voichita tenta atenuar ao dizer que a amiga se contenha porque as pessoas estão olhando. No lugar para onde vão, um monastério no meio do gelo e do nada, não há espaço para tamanha proximidade física, pois a dedicação das mulheres que vivem ali é totalmente para o trabalho pesado, a reza e o cumprimento das penitências impostas pelo padre que elas chamam de “papai”. A cara e os gestos de Alina (Cristina Flutur) são os de um animal enjaulado, e não demora muito para a fera querer se soltar.

Voichita (Cosmina Stratan) escolheu dedicar-se à vida no convento, puxando água do poço, acordando no meio da madrugada para orar e, com sorte, resgatar Alina para o que  a amiga entende poderá ser o encontro com a paz e a salvação do espírito. Não mesmo! Alina tem outras urgências, como querer dormir na mesma cama com Voichita e levá-la do convento urgentemente, para ver a vida na Alemanha, de onde veio a irrequieta moça. Alina se torna a grande e temida atração na paisagem branca e nua do vilarejo na Romênia. Como os olhares em cima dela questionam, acima de tudo, quais são os seus pecados, confessar-se com “papai” (um sujeito que teve uma ‘iluminação’ quando trabalhava em uma termoelétrica e se fez homem santo) é quase que uma imposição para Alina continuar no convento.

O que acontece naquele confessionário não fica claro em nenhum momento, mas deve ter sido uma ‘revelação’ e tanto para fazer Alina surtar, debater-se e tornar-se tão ameaçadora que só se aquieta quando amarrada a uma cama de hospital. A moça que volta ao convento não foi abatida nem pelos remédios, nem pela promessa de que Deus vai amá-la mais se ela confessar seus pecados. O diálogo entre as duas amigas, que a sensibilidade de Mungiu (também roteirista) sintetiza em sussurros, é um prenúncio do que está por vir.

–“Você tem que conhecer os pecados para poder evitá-los e receber Deus em seu coração”, diz Voichita.

–“E então você me amará?”, questiona Alina, fiel apenas aos seus instintos.

–“Eu te amo, Alina, mas é mais importante que Deus te ame”, se esquiva a jovem freirinha.

–“Eu prefiro o seu amor”, deixa claro Alina, se sujeitando até a responder sim ou não à lista de 464 pecados que lhe é apresentada.

Por preferir o amor humano, tão condenável aos olhos daqueles que o apartam do amor divino, Alina abre a jaula de novo, e rapidamente se arranjam correntes para amarrar a moça ao seu calvário. Se a nossa Clarice Lispector assistisse hoje a esse filme, com aquele seu jeito definitivo de falar das coisas da alma, certamente diria para Alina que “desistir da nossa animalidade é umsacrifício”.

Mas talvez fosse tarde para Alina…

Serviço Além das Montanhas (Dupã Dealuri) / 2013

Elenco: Cosmina Stratan, Cristina Flutur, Valeriu Andriuta, Dana Tapalaga

O filme é baseado em fatos reais, contados em livro da jornalista  Tatiana Niculescubran, sobre fato ocorrido em um monastério da Moldávia, em 2005. Além das montanhas deu prêmio de melhor roteiro a Cristian Mungiu, no festival de Cannes 2012, e de melhor atriz às duas protagonistas.

contato@veraleon.com.br

Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

Siga-me: