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O insulto

Tony Hanna (Adel Karam) e Yasser Salameh (Kamel El Basha) sabem como se insultar

A falta de uma calha na pequena varanda de Tony Hanna rendeu tanta confusão que o desenrolar dessa história foi parar na sala do presidente do Líbano, que tenta, invocando a ordem nacional, levar a bom termo a arenga entre o esquentado Tony, um cristão libanês, e o carrancudo Yasser Abdallah Salameh, um palestino refugiado que só quer fazer seu trabalho como manda o figurino. Se na varanda tivesse uma calha, a água com que Tony estava regando as plantas não teria caído na cabeça de Yasser, que naquela hora fazia consertos na rua e reagiu com o sangue fervendo e, não muito entredentes, disse o que pensava do descuidado morador: um “babaca do caralho”.

E se não fosse essa provocação toda, não teríamos o filme O Insulto (L’Insulte, candidato a Oscar 2018 de Melhor Filme Estrangeiro, estatueta levada pelo chileno Uma Mulher Fantástica), um longa escrito e dirigido por Ziad Doueiri que extrapola o que parecia ser apenas uma desavença entre dois turrões e quase provoca uma guerra em que falam mais alto velhos ingredientes humanos: a intolerância, o preconceito, a vingança, o orgulho ferido. Cutuca daqui, cutuca dali e a trama vai crescendo até virar caso de polícia, agrupar gente inflamada a se agredir nas ruas, e ativar ódios ancestrais traçando uma linha ideológica, religiosa e política que ninguém está disposto a transpor. Seja no filme de Doueiri, seja na vida real das crises no Oriente Médio onde ele se inspirou. Não há trégua na tela, não há trégua naquele lado do mundo, ainda que nos tentem vender a esperança de acordos de paz e cessar fogo.

O que poderia se resolver com um pedido de desculpas descamba para uns socos, umas costelas quebradas, mais agressão verbal e acaba ganhando o tribunal, palco para o confronto brilhante entre os advogados das duas partes, que são pai e filha a fazer valer, por que não?, um viés também ideológico nas suas retóricas. Mas, a gente sabe, tribunal é também lugar de lavar roupa suja, no dito popular. Ou de trazer à tona fatos, memórias, segredos que talvez continuassem fechados a sete chaves não fosse a exploração algo cirúrgica que se permitem os tribunais.

O patrão de Yasser bem que tenta conciliar o atrito entre os turrões

E tanto Tony Hanna (Adel Karam) quanto Yasser (Kamel El Basha) têm caixinhas com segredos que, dentro deles, nunca silenciaram. E o que são aquelas desavenças todas diante das intimidades que aqueles advogados escancaram à vista dos juízes e da plateia à beira de uma explosão? Sem querer minimizar a contenda histórica entre cristãos, palestinos e judeus, nossas guerras internas são mais devastadoras quando não nos colocamos como soldados a serviço de restaurar nossa paz.

No vibrante longa de Ziad Doueiri (em cartaz em São Paulo, no Cine Belas Artes, na Consolação), a cidade de Damour aparece já no comecinho do filme, com um pedido da mulher de Tony, a linda e sensata Shirine (Rita Hayek), para que se mudem para lá, agora que a filhinha de ambos está para nascer. Nem pensar, diz Tony, irredutível. Até que o tribunal lhe traz Damour de volta, especificamente o ano de 1976. Mais do que uma cidade, aquele pedaço de mundo próximo ao sul de Beirute pode ser o símbolo da redenção que se materializa no veredicto da juíza.

Os segredos revelados têm o poder de libertar. Minha musa Clarissa Pinkola Estés, no livro Mulheres que correm com os lobos, diz que “quando um segredo não é revelado, a dor persiste do mesmo jeito, e por toda a vida. A revelação e a dor nos salvam da zona morta”. Os insultos trocados por Tony e Yasser quase descambaram para uma guerra, mas acabaram conduzindo os dois para pacificar suas batalhas individuais, para limpar a zona morta onde doravante poderá crescer uma nova vida. A maravilha do cinema é que podemos aprender com ele. E, quem sabe, até limpar as zonas mortas em nós.

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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