O pai que nos falta deixa mais que um Abraço Partido
A decadência da Buenos Aires que o diretor argentino Daniel Burman mostra em O Abraço Partido, filme de 2004, parece ser uma metáfora das relações sem a menor energia que Ariel Makaroff (o premiado Daniel Hendler) mantém à sua volta. Na galeria comercial onde ele e a mãe têm uma loja de lingerie, a vida passa meio empurrada com a barriga, porque os tempos não são para muito entusiasmo e Ariel não é o cara mais bem-humorado das redondezas. E ele tem lá suas razões, que se vão descobrindo à medida que Burman vai contando quem é Ariel e quem são os tipos quehabitam seu mundo.
Quando ele era só um bebê, o pai se mandou para Israel, e deixou Sonja, a mãe, sozinha a comer leikaj (um bolo de mel da culinária judaica) e a vender calcinhas naquela loja que até hoje ostenta na vitrina um cartaz nada a ver, como se Elias Criações fosse um ser ainda com funções por ali. Na lojinha, exatamente, não, mas nos sentimentos que se misturam dentro de Ariel, aquele Elias nunca foi embora. E o rapaz sempre dá um jeito de colocar o pai nesse aqui e agora, pintando-o com as tintas que tem. Às vezes, até bem engraçadas, e saber tingir com humor o drama é uma marca de Daniel Burman.
Ao “apresentar” a lanchonete onde os comerciantes da galeria batem o ponto, Ariel se sai assim: “Parece um bar, mas para mim é uma história. Elias, meu pai, pediu um sanduíche de queijo com maionese, que estava estragada, e ele brigou com o dono e estourou o vidro de maionese no balcão. Não é uma grande história, é só uma lembrança, mas como tenho poucas do meu pai, eu a conto”. Pobre Ariel, a se agarrar nos fiapos que balançam entre a raiva do sujeito que se foi e a inequívoca vontade de trazê-lo mais perto.
Em meio à acidez dos comentários sobre Elias, existe também a necessidade de saber mais desta figura que é só um contorno. Ou uma imagem rápida, fugidia, no filme caseiro que Ariel revê, mostrando cenas do seu britmilah, a cerimônia de circuncisão do menino judeu, plena de simbolismo e motivo de orgulho paterno, principalmente. Mas talvez não para aquele pai que lhe escapa. No registro, que ele chama de Fragmentos de Elias, o pai passa correndo, e o rapaz conclui que ali, naquele ritual festivo, o homem já estava com pressa para ir embora. Quem sabe, vendo o filme uma vez mais, Ariel consiga descobrir qual razão,além da guerra de Yom Kipur (“quem vai à guerra por ideais?”, ironiza Ariel), fez Elias se colocar fora do seu abraço? Esse é o pai que Ariel traz dentro dele. O cara que se foi e para o qual se construiu uma história cheia de buracos, que o rapaz preenche com aquilo que tira da sua carência, das suas feridas, do claro sentimento de menos valia.
O Elias de carne e osso, aquele que fica do outro lado de um segredo insondável, esse convida Ariel para ir encontrá-lo, ficar num kibutz. Esse Elias liga de Israel com frequência para falar com Sonja, saber se ela está recebendo a pensão, mas o filho não engole esse movimento de aproximação. “Ele não nos deve nada; ou melhor, o que ele nos deve não pode mandar via banco Tel Aviv e muito menos em prestações”.
É grande a dívida de Elias, e nisso o longa nada tem de ficção. O pai que falta deixa na conta do desenvolvimento emocional do filho um passivo de consequências imprevisíveis. O diretor não aprofunda as questões psicológicas por trás das falas do personagem Ariel, mas lá está ele, sem disfarces, sem meias palavras. Ariel quer construir uma história sem fantasmas, já que Elias não merece seu empenho e vender calcinhas nunca foi um projeto de vida. Ele quer tirar passaporte polonês, ir embora para a Europa. Mas, como a vida não pede licença, Ariel terá que lidar com essas sombras ali mesmo, por entre as ruas de Buenos Aires, dando seus passos num terreno incerto para recompor o abraço partido.
Filme Abraço Partido – 2004 – Argentina
Direção: Daniel Burman
Elenco: Daniel Hendler, Adriana Eizemberg, Jorge D’ Elia