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O que Deus espera de Esther, a jovem nada ortodoxa

Tempos de Tinder, de ficar e desficar, de ser “de todo mundo e todo mundo é meu também”, de sexo pela internet e paixões que explodem na tela do celular como um ultimato para o paraíso.  Tempos de se jogar na rede, conquistar mil e vinte seguidores num dia (melhor se for em uma hora), de criar perfis falsos, de acreditar nos perfis espetaculosos, de fazer e desfazer realidades que escorrem pelos dedos. Tempos estranhos esses…

Estranho também é o mundo de Esther Shapiro. No mundo onde ela nasceu, uma comunidade de judeus ultraortodoxos em Williamsburg, em Nova Iorque, as moças não escolhem com quem vão casar, não se imaginam na universidade e não podem sonhar com outra vida a não ser aquela desenhada pelas regras da tradição hassídica. É assim que é, mas a minissérie Nada Ortodoxa, da Netflix,  diz que pode ser de outro jeito, ainda que para atravessar a fronteira dos costumes seja preciso pagar um alto preço.

Esther é Esty (a atriz israelense Shira Haas), criada pela avó e por uma tia, pois a mãe resolveu não rezar (literalmente) por aquela cartilha e foi embora quando a menina era bem pequena. Sabe-se lá se Esther é fiel ao DNA da mãe, uma alemã que volta à terra natal e que terá papel importante na trama, mas desde cedo a menina também parece muito incomodada, apertada no estreito horizonte que lhe é imposto. Esty,  tão magrinha e tão frágil que parece ter estacionado em algum ponto entre a infância e a idade dos hormônios, fez 19 anos, e na comunidade onde vive, quer queira quer não, chegou a hora de casar e fazer filhos, muitos filhos.

Yakov ou Yanky (Amit Rahav), o rapaz escolhido pelas famílias, é tão inexperiente quanto Esty, tão assustado quanto sua noiva para encarar a ideia do “foram felizes para sempre”. Especialmente quando nada se sabe sobre sexo, quando a vida do casal é olhada com lupa pela sogra da menina que precisa se tornar mulher a qualquer custo. Minissérie curta, de quatro episódios, Nada Ortodoxa vai nos amarrando e criando uma torcida por Esther, ousada demais, determinada a sair da camisa de força que a vida em Williamsburg lhe impõe.

Nenhuma barreira é tão alta que o ímpeto de viver não consiga transpor. A comunidade de judeus sobreviventes do holocausto, em que vive Esther, é a prova de que o ser humano traz dentro dele um chamado, um apelo, um daimon que o faz reconstruir-se. A jovem não se faz de surda e pula o muro que a separa de uma vida onde a liberdade é possível. Ser livre também cobra um preço e o que diferencia as pessoas na hora de quitar a fatura é que algumas se dispõem a pagar e outras, sem impulso interno para o voo, escolhem ficar e pagam os juros da negação de si mesmas.

Esther vai. Deixa para trás a história de uma vida que mal desabrochou, a perplexidade dos que ficaram, e a implacável perseguição (de Yakov e o perturbado primo Moishe) que dará o tempero aos novos passos da nossa heroína, agora solta em uma Berlim de deixar tonto até um cosmopolita do mundo ocidental. Guiada por aquele daimon que a coloca no caminho da realização, Esther vai encontrando seus pares. Como o conservatório de música onde ela chega “por acaso”, num ensaio dos alunos, jovens e desbravadores como ela. O som dos instrumentos, mesmo quando fora do tom, faz vibrar o coração de Esther, extasiada e oferecendo um dos momentos mais belos nesta produção dirigida por Maria Schrader.

A música, nos tempos em Willimasburg, alimentou os sonhos de Esther, que fazia aulas de piano às escondidas. Agora, na plateia do conservatório acompanhando o ensaio dos jovens músicos, ela pode dar forma ao sonho, pode ganhar fôlego para um novo salto, ainda que o débito com sua comunidade tente puxá-la de volta, à força, se for preciso. Mas, qual é a conta maior? A que o coletivo nos impõe ou a que assumimos conosco, individualmente, quando abrimos os olhos para a vida? Esther e Yakov têm contas a acertar e esse par, inocente e formado dentro de uma tradição, pode se olhar nos olhos, apesar de toda a dor, e resgatar o melhor de cada um. E o melhor de cada um é aquilo que Deus (e não a religião) espera de nós, um conflito que se traduz na fala de Esther, quando diz: “Fugi porque Deus esperava demais de mim, mas eu tracei meu próprio caminho”. Só ao ingressar no próprio caminho, com os pés esfolados e a alma cantante, é que ela, finalmente, renasce e se põe em paz com Deus.

Não deixe de ver o making off dessa produção. É uma generosa concessão da produção e das roteiristas Anna Winger e Alexa Karolinski, brilhantes ao recriar com fidelidade o universo tão peculiar da tradição hassídica. A minissérie, falada em ídiche, inglês e alemão, é inspirada no livro Unorthodox, de Deborah Feldman, que também é apresentada no making off e conta da sua experiência pessoal na comunidade nova-iorquina.

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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