Que amor é esse!
“Nunca é triste a verdade; o que ela não tem é jeito”.
Este é o verso de uma canção do cantor e compositor espanhol Joan Manuel Serrat, e que sempre me vem à cabeça quando me deparo com situações que podem até parecer tristes, mas não são. O que elas não têm é jeito. Foi nesta música que me apoiei depois de assistir ao filme Amor (Amour/2012), sufocada por tanta verdade dita de um jeito que não se pode ajeitar. Ofilme de Michael Haneke não faz concessões àquela tendência tão humana de acreditar que se pode desenhar a vida conforme nosso senso estético, lógico, social, digno. Não é bem assim. De repente, a vida se interpõe entre nossos rascunhos (e onipotência) e desenha o traço final, subverte a ordem, nos tira as ilusões e, sem a menor piedade, sentencia: te vira!
É o que George (Jean-Louis Trintignant) aprende a fazer quando Anne (Emmanuelle Riva) entra na dimensão misteriosa do cérebro em curto-circuito, e fixa seu olhar estático no homem perplexo ao ver sua amada (tão linda na noite anterior) naquela linha que divide o tempo bom da realidade que ainda não tem nome. E só por amor, só por aquela cumplicidade que alguns casais constroem é que ele aceita lidar não com a tristeza, mas com a verdade que não tem jeito.
Desenha-se, a partir dali, o traço final, anunciado na cena pungente, chocante que abre o filme e, já então, nos colocando frente a frente com nossa finitude. Do primeiro momento de espanto de George, à prontidão de cuidar de uma Anne agora limitada, ainda que totalmente lúcida, tudo se passa com certa naturalidade na tela. George não se queixa,não pede ajuda à filha Eva (Isabelle Hupert), conta mal e mal com o apoio dos zeladores de onde mora e continua a olhar para Anne com um desmedido e invejável amor. Dentro de nós, entretanto, nada disso é confortável, porque tudo escapa àquela cartilha ilusória que criamos para lidar com o imponderável, e o que se vê naquele apartamento parisiense não tem a cor das nossas fantasias.
Sim, porque a velhice é imprevisível e tem suas próprias tintas. Ainda que os manuais de saúde e bem-estar façam seus cálculos e ditem regras de como envelhecer bem, acontece de o diabo mudar repentinamente as peças no xadrez da vida e nos obriga a jogar com ele. E nos tornamos Anne, nos tornamos George, nos tornamos Eva, protagonistas de um roteiro que, na melhor das hipóteses, poderá ser vivido sem culpa. Mas quem é esse que cumpre, sem culpa, as exigências das relações sempre tão carregadas de projeções? Nem Anne, com um lado paralisado pelo derrame, nem George, reaprendendo seu lugar no mundo, e tampouco Eva, mergulhada no medo, se livram da culpa. Ela porque sabe que está dando trabalho; ele porque teme não dar conta de tudo, e a filha porque não consegue se envolver, ainda que se preocupe.
Só mesmo o amor para duelar com a culpa e sair vencedor, olhar a beleza (da vida) arruinada e ainda assim encontrar voz para tornar presente o que um dia fomos. É única, é emocionante a cena em que George, olhando com ternura para Anne, canta com ela alguns versos da música Sur le Pont D’Avignon, nous dansons (nós dançamos sobre a Ponte D’ Avignon). Com a boca travada pela doença, Anne faz o que pode para cantar também, e a atriz francesa Emmanuelle Riva, soberba, surpreende pelo tanto que pode ao dar à sua Anne dor e amor, raiva e cansaço. Muito antes de serem abatidos pelo cansaço, Anne faz seu pedido a George. Ambos sabem que em algum momento ficará insuportável e aí, sim, sobre esse momento eles podem ter o controle.
Em um dos encontros nervosos entre Eva e George, depois de um segundo ataque de Anne, ela pergunta ao pai como vai ser agora. E sem meias palavras (aquela verdade sem jeito de acomodar) ele diz: “será como tem sido até aqui, irá de mal a pior até o dia em que isso acabar”. O amor orienta grande parte das escolhas que fazemos e é esta verdade (tão difícil de assumir) que nos sequestra ao acompanhar o Amor que Michael Haneke escreveu para Anne e George. O diretor alemão nos brinda muito pouco com o lado direito desse sentimento, porque esse a gente conhece, escolhe partilhar e exibir. O que Haneke propõe é perturbador: para ser inteiro o Amor, é preciso ter coragem de olhar também para o seu avesso.
Amour – Direção Michael Haneke, com Emmanuelle Riva, Jean-Louis Trintignant e Isabelle Huppert.
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro 2012