Se alguém tem que morrer, que seja o outro
O elenco tem momentos arrebatadores numa trama à altura
Não se iluda. Alguém tem que morrer (minissérie da Netflix) é bem mais violenta do que o seu título sugere. Assisti com o coração na boca, ansiosa para saber onde aquilo tudo ia parar, até desembocar num final que pede ainda mais fôlego! Pense numa trama que se desenrola na Espanha da ditadura de Francisco Franco, nos anos 1950, num ambiente de poder e patrulhas ideológicas, campo fértil para fazer aflorar aspectos sombrios da natureza humana. Homofobia, machismo, favorecimentos escusos, intrigas, conservadorismo e todos os medos que costuram aberrações. O diretor mexicano Manolo Caro não economiza suspense.
Pois é uma aberração que Gabino, o jovem que volta do México, depois de 10 anos estudando e morando com familiares da mãe, Mina (a linda Cecília Suárez), traga à tiracolo o amigo Lázaro, bailarino sensual que será o rastilho de pólvora para incendiar a reputação da família onde se combinam segredinhos e violência. No trono de poder, a matriarca Amparo (a estupenda Carmen Maura), mãe de Gregório e avó que desperta em Gabino os piores olhares, as palavras mais secas, o trato inequívoco do desprezo. Depois, a gente fica sabendo a origem de tanta repulsa.
Os rapazes têm uma programação bem diferente daquela que aguarda Gabino na volta para casa. Eles querem ir a Paris, aproveitar o pouco tempo de férias e voltar ao México, seguir a vida por lá. Não passa pela cabeça do herdeiro da família Falcón entrar em um casamento arranjado com a mimada Cayetana, submeter-se a avó e seguir a carreira do pai, sujeito que passa longe de qualquer dignidade.
Até porque quem Gabino quer mesmo é Lázaro (o bailarino mexicano Isaac Hernandez, que estreia como ator), assumindo a homossexualidade que, naquela Espanha, era uma doença a ser tratada com escárnio, prisão, tortura e, por que não?, a morte. Lázaro, no entanto, só quer a amizade de Gabino, mas tanta proximidade não passa despercebida na sociedade preconceituosa da época e monta-se, então, o cenário para a fogueira medieval. Não falta quem acenda o fósforo bem pertinho da pólvora e a gente fica, do lado de cá da telinha, angustiada para saber quem vai ser queimado primeiro.
A trama tem como pano de fundo um clube de tiro para a alta sociedade de então, o que dá ainda mais sentido aos títulos dos três episódios da série. Sim, são apenas três, denominados Solte a presa, Mire o alvo e Puxe o gatilho, o que sugere o clima de tensão constante, sem trégua, apoiado por um elenco que tem momentos arrebatadores.
Quando o que se desenrola à nossa frente é ficção tem-se a oportunidade de elaborar o drama que retrata coisas da vida. Quando a cena se fecha e as luzes se acendem, a gente volta pra casa, toma um café, ou simplesmente muda de canal nesses tempos de cinema em casa. No entanto, Alguém tem que morrer não pode ser descartado assim tão facilmente. Muda a época, o contexto político, o figurino, as leis, mas a natureza humana, refém das suas sombras, é o que determina se evoluímos ou não. Pregar uma pátria livre de pecados, usando para isso a religião, a moral de conveniência e a patrulha que subverte as escolhas individuais é uma doença da qual o ser humano ainda não se curou, mesmo chorando sobre perdas irreparáveis. Assim, se alguém tem que morrer, que seja o outro.