Mundo pós pandemia? O que será, que será…
Se bola de cristal funcionasse, eu gostaria de ter uma, pois acredito que só consultando as estrelas saberemos como será o mundo pós Covid. Ainda estamos tentando saber que coisa é essa que nos afastou de tudo o que era precioso, e que, como saldo negativo com o qual ainda teremos que lidar, disseminou o medo. Desta pequena palavra, medo, vários males deram cria – como as crises de ansiedade, de pânico, as perturbações de sono – e se espalharam pelo mundo, tal qual uma caixa de Pandora do século 21.
Até mesmo para os médicos e atividades afins, parece que a morte nunca chegou tão perto, sem poupar amigos, familiares e outros seres humanos que, com sua partida, tornaram o mundo menor e mais pobre. Depois de 7 meses e chegando a 145 mil mortos, pode até parecer que o pior já passou quando, em níveis globais, se tem a notícia de que teremos vacina já no primeiro semestre de 2021, e de que aqui no nosso pedaço de mundo, o Brasil entrou em estágio desacelerado da Covid pela primeira vez, como anunciaram alguns portais de notícias neste 1º de outubro. Mas, só para lembrar que as moiras, divindades da mitologia que controlam o destino dos mortais, continuam mais afiadas do que nunca, também hoje voltamos a registrar mais de mil mortes em 24 horas.
Diante de um cenário como este, de que forma olhar esse mundo que ainda terá de conviver com Covid por anos, com habitantes que terão que aprender a lidar com uma nova percepção de tempo e de valor, e não mais este tempo que medimos com o relógio, não mais o valor que medimos com preço? Fomos brecados por um vírus e esse tipo, sem cara, sem cor e sem cheiro, derrubou o PIB mundial, nos trancou dentro de casa, nos isolou, fechou empresas, demitiu pessoas, cancelou projetos e nos obrigou a rever nosso sonho. Não aquele de comprar o carro novo, reformar a casa ou fazer um casamento de cinema para a filha ou a neta, símbolos de felicidade que se esvaziaram com essa pandemia e que, verdade seja dita, constatamos que podemos viver sem. Sim, porque são apenas símbolos e não a felicidade em si.
A realidade da pandemia, para quem se propõe a ir além dos dados numéricos e das brigas com os negacionistas, nos obrigou a rever nosso sonho. Não aquilo que confundimos com projetos e que nos jogaram na corrida louca, por vezes insana, para alcançar os “troféus”. Falo do sonho de ser aquilo que devemos ser, a tarefa de polir e aperfeiçoar o indivíduo que, lá no fim da jornada, esteja convicto de que cumpriu com o Livro da Vida segundo aquilo que nos propusemos ao chegar por aqui.
Logo que nos vimos em regime de isolamento e tantos em quarentena, um movimento de empatia e solidariedade se iniciou, com pessoas que enxergaram a dor do outro e se inseriram na mudança brusca de rotina como anjos da guarda que saíam à rua para fazer compras e deixar na porta de quem ainda ficaria trancado em casa por meses a fio sacolinhas de supermercado e marmitas quentinhas. Outros ainda, dotados de arte e desinibição, foram para as sacadas, para as janelas e espalharam sons que acompanharam por dias e noites os que buscavam garantias de que não estavam sozinhos e de que aquilo tudo ia passar.
Encantados com tanta presença solidária, nos enchemos de esperança de que o mundo ia mudar com a pandemia. Que estávamos nos descobrindo como seres humanos verdadeiramente humanos, atentos e acolhedores, e que estávamos aprendendo o princípio budista de que “não existem outros”, de que somos todos um. Mas, não demorou muito para, entre a dor do luto não realizado, dadas as condições impostas pela Covid para velório e sepultamento, entrarmos num outro tipo de dor. Aquela que fere a ética humana e compromete a fé no indivíduo. Começaram a pipocar as notícias sobre os desvios de verba pública destinada à compra de equipamentos para salvar vidas nas UTIs lotadas e nos hospitais de campanha, que também foram um mote para o dinheiro ir parar no bolso de quem nunca vai mudar, venham quantas pandemias vierem. Flagrantes de que por mais que estejamos sendo convocados a rever comportamentos e prioridades, e a polir o ser humano de maneira a que não nos envergonhemos de nós mesmos, há um tipo de consciência (ou a falta dela) para o qual não há vacina. Pelo menos não a curto prazo, pois empatia, compaixão e consciência não são produzidas em laboratório.
Será que a humanidade precisava desse break total? Não tenho a menor dúvida e isso é o que garante a minha bola de cristal particular. O mundo parou e passamos a ter tempo de pausar e olhar em volta, de parar a corrida enlouquecida onde nos metemos para dar conta de coisas que, agora, vivemos sem. O lazer acabou, o consumo desenfreado está contido, o excesso de agenda virou home office, e até os abraços estão proibidos. Por mais que sintamos falta da movimentada vida lá fora, o que está pegando mesmo é a carência que estamos sentindo uns dos outros. Da presença, do olho no olho, do toque. E essa verdade que salta aos nossos poros deveria ser o impulso para promover as mudanças que precisaremos implementar a partir das nossas vidas individuais, fazendo novas escolhas e dando nome ao que realmente importa.
Não estou sozinha neste pensamento. O navegador Amyr Klink, que cruzou os mares do planeta e nos traz de lá ensinamentos preciosos, diz que a experiência atual nos levará a redesenhar a vida como a vemos hoje. Pois o quem está doente, no fim das contas, é o planeta, e o habitante desta casa generosa somos nós, que de volta lhe damos tão pouco, que de volta somos tão agressivos, tão insaciáveis, tão inconscientes. Klink nos desafia com perguntas tais como “Tem espaço para o supérfluo? Qual a importância dele? Precisamos ter tantos cavalos em um carro? Ter tantos kwtts em uma casa?” Esse tipo de questionamento pode parecer desconexo com o tema pandemia, mundo pós covid, mas é exatamente nosso comportamento de habitantes ingratos que tem exaurido recursos e desequilibrado a ordem da natureza no seu ritmo mais elementar.
Essas colocações de um pensar mais global são urgentes. Não são para o mundo pós Covid, que só poderá ter respostas mais positivas para a humanidade se tomarmos essa tarefa como nossa. Não precisamos ir à ONU e assinar a carta para frear a crise climática ou para provar que a terra é redonda. A mudança começa aqui, no nosso quintal. Ainda joga seu papel de bala pela janela do carro? A bituca do cigarro também? Deixa o cocô do cachorro na calçada ou joga o saquinho ao pé da árvore ou na lixeira do prédio que esbarrou com você no meio do caminho? Enquanto acharmos que isso “não tem nada a ver”, não podemos nos surpreender com o degelo das calotas polares e com a subida das marés. “Não há tempo a perder, pois a vida é curta para repetir caminhos”, diz Amyr Klink, e os caminhos que repetimos até aqui estão fazendo desmoronar a casa que habitamos.
Não tenho dúvida de que tiramos lições preciosas desta pandemia. Uma delas, que pode ser determinante para mudar nosso olhar sobre nova forma de estar no mundo, é que “a vida é perto”. Sim, descobrimos que a viagem ao redor do nosso quarto, nesses tempos de confinamento e de reorganizar nosso cotidiano, trouxe a vida para perto. Estivemos mais conosco, pudemos nos olhar no espelho mais demoradamente para perguntar “quem é você aí refletido no espelho”? O que você quer se sobreviver a tudo isso? Que sujeito vai nascer quando a luz romper a treva e clarear caminhos e orientar nossas escolhas? Vimos que a vida é perto ao arder de saudade de filhos e netos, ao nos contentarmos com uma chamada de vídeo e ali ver as caras tão amadas, tão únicas. Vimos que a vida é perto e é depressa, que ela passa, sim, num estalar de dedos. E que não volta. Que cantamos parabéns em festas virtuais e não abraçamos o aniversariante. Até quando o aniversariante era a nossa mãe, o nosso filho.
Se eu acredito num mundo melhor pós Covid? Pensar assim, em mundo, é acreditar que vamos mudar coletivamente, em massa, que por osmose vamos todos ser mocinhos e não sobrará nenhum bandido. Eu acredito que pessoas podem, sim, se tornar seres humanos melhores e que se esforçarão para levar adiante o que aprenderam e o que desenvolveram como aperfeiçoamento. Pois um ser consciente sabe que ninguém é próspero e protegido se todos não estiverem prósperos e protegidos, seguros e incluídos. Quem tiver olhos de ver, ouvidos de ouvir e coração de sentir sabe que essa experiência está a nos dizer muita coisa. Que não somos intocáveis. Que nada nos diferencia uns dos outros. Que somos finitos. Que não estamos sós. Que temos saudade. Que precisamos aprender a conviver, a negociar. Que esta é uma oportunidade de nos apropriarmos de nós mesmos, das nossas circunstâncias para sermos aquilo que viemos ser. Ou como diz a Mafalda: “Justo a mim coube ser eu”. Ou seja, a tarefa de criar um ser humano melhor é de cada um. Não cabe ao Estado, ao papai, à mamãe, à universidade ou à cigana. O ser humano melhor é o indivíduo que possa responder sim a uma pergunta que o imperador Marco Aurélio já fez, lá na Antiguidade:
“Aquilo que fazes é digno diante da morte?”
Se pudermos responder sim, então a Covid terá sido um grande bem para a humanidade.
(Palestra apresentada na abertura do IX Congresso Interdisciplinar da Associação Paulista de Medicina Santos, em 1º de outubro 2020, com o tema “O que mudou no mundo pós Covid)