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Quer namorar comigo?

Cenas de um casamento: depois de um dia daqueles, a mulher passa a noite atendendo ao filho caçula, que chora e não dá sossego. Quando ele se aquieta, os mais velhos já estão em pé, pedindo o café da manhã, e o marido idem, só que reclamando também da falta de um botão na camisa. Até que um dia a santa explode, diz que não aguenta mais, passa um dia inteiro fora de casa e provoca, com essa atitude, uma reflexão que faz o marido concluir que o problema é ele, já que a mulher admite não conseguir ficar longe da casa e nem dos filhos.

Cenas de uma tentativa: preocupado, o marido aconselha-se com um amigo e se percebe, quando questionado, ausente do jogo da conquista dentro do casamento. “Ora, isso teve sentido até o casamento! Depois de 19 anos, eu já nem sei mais fazer isso! E para que, se ela está em casa, segura e garantida?” Mas, considerando o andar da procissão, o marido acha melhor tentar e põe em prática o jogo de 19 anos atrás. Frustrante! A mulher, depois de outro dia daqueles, entreabre os olhos e fecha-os em seguida, ignorando aquela cena que, para ela, já não faz sentido.

Cenas de um resgate: eis que o caçula chora e, isso sim, a desperta do seu sono e cansaço, mas o marido a impede de levantar. Vai até o quarto e, com o bebê no colo, canta e dança suavemente, até que ele adormece e é colocado na cama, em carinhoso silêncio. Ao se voltar, percebe que a mulher o observa da porta e se surpreende quando ela diz que ele nunca esteve tão encantador. Toma-o pelas mãos e ambos se propõem a descobrir os sabores da nova conquista.

A ideia, extraída do cotidiano de uma família, não saiu de nenhum livro de teorias do comportamento, mas de um dos episódios da Família Dinossauro, o seriado que se tornou o melhor aperitivo do almoço e tem trazido mais mensagens do que o noticiário plastificado de violência, corrupção e desalento.

Este, em que Fran chegou aos limites da sua frustração com o marido Dino da Silva Sauro, trouxe para a tela a realidade dos casamentos que nada têm de pré-históricos (ou têm?), onde a queixa básica é a desigualdade de um cotidiano que torna os parceiros distantes do objetivo primeiro de sua união: partilhar cada dia com doação mútua e renovada.

No entanto, como se tivessem papéis diferentes a cumprir, homem e mulher passam a viver universos que, em comum, só têm a casa em que moram e os filhos (que fizeram juntos) pelos quais são responsáveis. Mesmo assim, da casa cuida a mulher e dos filhos… ela também, porque no contrato mudo celebrado fora do casamento e sustentado por um discurso cultural este sim pré-histórico, o homem incorpora apenas o papel de provedor.
Sem levantar qualquer bandeira feminista, até porque Fran é mais sensata e nem foi apresentada a Bette Friedmann, a pacífica alossaura tem uma reação de ser humano (por que não ela?) e nas entrelinhas diz ao machista Dino que alguma coisa está a cheirar mal! Não é a casa, não são as crianças, não é o mundo… Lição para casa: quem pode ser? “Eu, claro que sou eu”, reconhece um Dino abatido e perdido, em um abençoado momento de lucidez.

Fran ligou o pisca-alerta e Dino prestou atenção. Parou para avaliar não só o casamento, que ele já percebera doente, mas também para se perguntar onde estava falhando como marido, como pai e, acima de qualquer papel, como homem? O pré-histórico entendeu o sinal vermelho, mas o que dizer do homem do século XXI, tão hábil na descoberta do mundo novo e tão incompetente em manter a estrutura do seu núcleo?
Dino escolheu um amigo para falar da sua preocupação e que susto levou quando este lhe perguntou há quanto tempo não fazia a dança do acasalamento para Fran. O amigo, por exemplo, fazia umas três ou quatro vezes por semana e isso era importante para manter o interesse de ambos pelo casamento. O jogo da conquista fora aposentado por Dino e ele admitiu que já nem sabia fazer mais isso, depois de 19 anos! Quem viu o episódio Quer namorar comigo? se sentiu flagrado na realidade do próprio cotidiano, insípido, inodoro e incolor. Ou não?

Como subestimar a natureza a ponto de esquecer que homem e mulher nasceram para se completar e que para esse encontro acontecer é fundamental, é urgente que o interesse pelo outro sobreviva às questões da vida doméstica? Antes de esposos e de pais, são homem e mulher, as duas partes de um todo que um dia se atraíram e para tanto se empenharam com sedução, malícia, ternura, carinho, sensualidade e um delicioso gosto pelo enamoramento. Garantidos (?) pelo até que a morte os separe, os parceiros esquecem que o exercício do amor se faz a cada dia e quando acordam – quando acordam! – se surpreendem por não saberem fazer mais a dança do acasalamento.

Aperfeiçoamo-nos em tudo. Dotamos a casa com o que há de mais prático e moderno, acompanhamos a dieta da moda e lemos com avidez os mexericos que acabam com a vida alheia. Mas o fio das relações, aquele que deveria ser tecido com sutileza e força para sustentar a realidade e o sonho, fica no fundo do armário, amarrando o pacote onde se embrulhou, há muito tempo, o terno e o vestido do casamento.

O medo de perder, que já havia colocado Dino em guarda, fez com que ele fosse mais longe, apesar de todo o constrangimento: entrou em uma academia para reaprender a dança do acasalamento. E é isso que ele vai mostrar para Fran, no meio da noite, esperando ser recebido com tudo, menos com o cansaço e a indiferença da mulher. É´ o pequeno Baby – o símbolo da carência assumida e declarada com o insistente precisa me amar, precisa me amar – que move o último peão do tabuleiro, ao chorar e receber a atenção do ex-ausente Dino.

Ao ninar o próprio filho, sob o olhar enternecido da mulher, Dino estava ganhando uma namorada. Não a que ele conhecera há 19 anos atrás, mas aquela que a vida conjugal fora moldando e que estava buscando também um namorado à altura. Fazer o mesmo discurso da juventude é acreditar que a vida se deteve lá naquele tempo, que alegrias e decepções não se inscreveram na história de cada um e no conjunto da vida a dois. Trazer para o presente as mesmas flores do passado só seria possível se Fran e Dino tivessem cultivado um jardim com doses equilibradas de água, luz e sol, e que ambos, atentos, se tivessem oferecido mutuamente o fruto da colheita diária.

Nesta colheita estão não só as surpresas boas da vida, mas também a mesmice que faz a gente rodar em círculo. Fraldas e mamadeiras que se misturam às panelas e aos papéis trazidos do escritório, o supermercado feito às pressas enquanto o outro se propõe a levar filhos à escola, o cansaço dividido no ombro que se oferece e acolhe são alguns passos da dança do acasalamento que não existiam há 19 anos atrás. Fazer do cotidiano uma dança sempre atraente talvez seja a proposta mais difícil que os casais têm para cumprir, sejam eles dinossauros ou não, para que um dia alguém não se surpreenda com a falta de resposta à pergunta quer namorar comigo?

Publicado em jornal A Tribuna.

 

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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