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Voando para longe como a Asa Branca


Foto publicado no Verdinha, site da Radio Verdes Mares/ 17/12/2017

A terra seca, aquela que no agreste brasileiro nega vida ao homem, ao gado e à plantação, tem um cheiro que a gente não esquece jamais, porque parece um pedido de socorro, é quase um grito que não ecoa, como no quadro de Munch, mas sem trazer terror. É só um pesar. Talvez tenha sido esta memória que se fez à flor da pele quando fui assistir ao filme Gonzaga de Pai Pra Filho, e me fez chorar tanto. Não de saudade, exatamente, porque lá nunca vivi, mas por saber que aquelas paragens escolhidas pelo diretor Breno Silveira, das árvores que se contorcem à espera de água, onde minha emoção se grudou, eram, também, o berço de pai e mãe. E, por isso, sim, me dizia respeito. Quando olhei “a terra ardendo” do filme, lembrei daquela que meus pés pisaram quando lá estive, em visita a avó, tios e primos, nos meus 11 anos de idade. Era só uma menina, sem noção de que para vencer a vida severina meus pais tinham se colocado em marcha, fazendo o caminho da alma, sábia, que nos chama para onde tem água e pão.

Alguns atendem ao chamado; outros, não. Ao contrário de Gonzagão, que deixou o semiárido de Exu carregando um sonho e uma sanfona, meus pais saíram de Águas Belas (a 400 km de Exu) apenas com o sonho. E vieram dar aqui, nas belas águas santistas, onde abri os olhos para a vida e me tornei gente. Esta compreensão – de me tornar gente a partir de Sebastião e Noêmia, desbravadores de um destino incerto – me encheu de respeito e gratidão ao mergulhar na história contada por Breno Silveira e reconhecer meus pais ali, sob o pé do juazeiro, como sementes que vingaram apesar da vida severina. Numa divagação do livre pensar, o que teria sido se lá permanecessem, na terra “de que se morre de velhice antes dos trinta”? Vieram para cá “aprender um outro ABC”, letras que ganharam vida e se ampliaram na cartilha dos filhos, tal qual Gonzagão fez com Gonzaguinha, o filho que levou um tempo para entender o cheiro da terra seca.

Gonzagão e Sebastião, cada um do seu jeito, mas com o mesmo impulso na base: dar às crias um horizonte que não fosse aquele, de “tamanha judiação”. Luiz Gonzaga faria hoje 100 anos, mas algumas pessoas não podem ser conjugadas no futuro do pretérito, simplesmente porque elas são. Rompem a linha do tempo e se eternizam para nos emocionar, para nos fazer refletir, nos orgulhar e reafirmar a gratidão. Para entender o movimento que faz “inté mesmo a asa branca”, que “bateu asas e voou”, também eu levei muito tempo, e cheguei a cobrar que deveriam ter voado mais alto, mais longe. Hoje sei que quem nasce asa branca, esta pomba da caatinga, como meus pais e Gonzagão, resistem mais que à seca do nordeste. Sem esperar a chuva cair de novo para um dia voltar ao sertão, voam no limite do sonho e se agarram à fé de que farão chover e aguarão qualquer solo onde deitem suas sementes.

Eu sou o que brotou deste chão. 

Texto publicado em dezembro de 2012, no centenário de nascimento de Luiz Gonzaga, e incluído no blog, neste 2 de agosto, no 29º aniversário de sua morte

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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