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Desapega, já! A vida pede leveza

A renúncia não consiste em desistir das coisas deste mundo, mas em aceitar que elas se vão”. Shunryu Suzuki

Levante a mão aquele que não guarda um monte de tranqueira entulhando gavetas e se amontoando em prateleiras que estejam, de preferência, fora do alcance dos olhos? Bem longe das “vistas”, é mais fácil ignorar a pilha de livros, as bugigangas e, claro, o apego que costura tudo isso, fazendo com que se deixe para amanhã a faxina das inutilidades. Já me desfiz de muita coisa, mudando de casa, de cidade, de estado, e a cada saída do caminhão para o novo endereço, um tanto das minhas referências iam ficando para trás, com um certo desconforto, mas sem sofrimento. De roupas a sapatos, de tapetes a quadros, de móveis a louças, muito já deixei ir.

Nessas andanças pra lá e pra cá, no entanto, há pedaços que vão ficando, testemunhas fiéis do que experimentei, como se soubessem de mim mais do que eu mesma sei. Minhas agendas, por exemplo, se amontoam (atravessaram o século!) e quando olho para elas, já tão amareladas e sem o frescor das páginas em branco, penso que preciso me desfazer delas antes de morrer, sem que haja neste pensamento qualquer vestígio de morbidez. Eu vou. Um dia eu vou, você também. Simples assim. E quando eu for, não quero ninguém espiando para o que a Vera estava fazendo em 2004, por exemplo, além de anotar versos de Florbela Espanca nos cantos em branco da agenda.

Mas para que ninguém me veja na lente desfocada do tempo e dos feitos que só dizem respeito a mim, preciso me desfazer das agendas. Nada de jogar no lixo, mas dar um fim total, queimar, como nos filmes, com a diferença de que não tenho uma lareira com línguas de fogo para devorar esse tanto de papel. Nesse tempo que não se detém, é melhor encontrar um jeito. Para as agendas e para o que, naquelas páginas, me traduz nesse aqui e agora, tudo tão meu, tudo tão eterno e tudo tão cinzas!

E é quando olho as agendas que percebo, voando por entre os dias, pulando para outro ano, sentimentos, memórias e recortes da vida que já empalideceram, querendo eu tornar permanente o que foi bom, como se possível fosse eternizar coisas, pessoas ou mesmo emoções. Bem que a gente gostaria. E como se sofre ao acreditar nisso, ao querer conter no nosso limitado poder as coisas que só cabem entre o céu e a terra!

E dá-lhe lição! Mesmo ante as evidências – e está aí a morte para carimbar nossa finitude, levando a quem amamos tanto – preferimos a ilusão do duradouro, negamos a realidade da mudança, da impermanência. No livro A Sabedoria da Natureza, o autor, Roberto Otsu, troca em miúdos esse conceito tão difícil de apreender: Desejar que um objeto, uma pessoa, ou uma parte da vida nunca se altere é aleijar a existência”. Sim, tudo se altera, e mesmo sabendo disso, mesmo nos despedindo de amores e cortando raízes, ainda assim vivemos no apego a crenças, ideias, valores, status, ilusões, vidas alheias, tomando das Moiras o fio que só a elas pertence.

Quando olhamos além das prateleiras que as vistas alcançam, lá estão as malas carregadas desses conteúdos tão difíceis de a gente renunciar, abandonar. Mesmo os mais feios, como raivas, julgamentos, culpas, remorsos, grudados que estão às paredes do coração. O dia de varrer esse lixo emocional, de desapegar, de deixar ir, é hoje. De queimar as agendas também, mas se eu não fizer isso a tempo, elas serão apenas papéis para reciclar. O entulho que ocupa o lugar do amor, do perdão, da aceitação, esse ninguém pode reciclar por mim ou por você. Quando Átropos chegar e me olhar nos olhos, para me levar de volta ao Todo, é melhor que eu esteja mais leve.

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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