Lembranças de um 8 de setembro
Não sei o que a mãe tinha na cabeça quando teimava de levar a gente para a festa da Padroeira, no Monte Serrat. Lá por aquele final da década de 1950, éramos uma escadinha de 6, 7 e 8 anos de idade e nos nossos planos aquilo não era um bom programa. Maior feriado e a gente tinha que se pôr com cara de festa! Largar a brincadeira na rua, sempre tão cheia do alvoroço da molecada, com as calçadas riscadas para pular amarelinha, era um castigo que a mãe não tinha o direito de aplicar, principalmente em dia santo.
E não era só deixar de pular amarelinha. Tudo piorava com a fiscalização severa em cima do banho e a falta de escolha: roupa engomada, meia, sapato de pulseirinha e o pobre do irmão até com suspensórios! Todo mundo impecável e de cara amarrada, com a mãe surda a todos os apelos, esperávamos o bonde que nos deixava ao pé do Monte Serrat.
Subir de bondinho? Nem pensar! Parece que os pedidos da mãe chegariam mais perto da Santa se a gente subisse as escadarias, parando em cada um dos nichos para que ela acendesse as velas e fizesse suas orações. Era o tempo que a trinca miúda tinha para tomar fôlego, as pernas já tremendo, a boca seca e os resmungos mastigados para que ela não ouvisse.
Mas houve um ano – bendito ano! – que o morro quase veio abaixo, com povo e tudo. Fazia um calor danado, como se o verão tivesse invadido aquele final de inverno, e a atmosfera era sufocante. Sempre que subíamos, consolava-nos a ideia de que pra descer todo santo ajuda, mas naquele ano tivemos que contar com a ajuda dos santos – todos – não só para descer, mas para chegarmos vivos lá embaixo.
Era a massa humana mais assustadora que já vira e descíamos quase sem tocar os pés no chão, porque a multidão nos levava. Agarrados à saia da mãe, com os rostos erguidos para ter certeza de que não a perderíamos de vista, tentávamos nos manter em pé, adivinhando os degraus e chorando, chorando feito criança, como ainda hoje se diz por aí. Pelo centro das escadarias não era mais possível continuar descendo e algumas pessoas começaram a ser puxadas pelos moradores que tinham suas casas bem junto ao caminho. As crianças iam primeiro e, passando de braço em braço, arranhando-se nas cercas e nos galhos das árvores, tínhamos pelo menos a chance de não morrer sufocados. A descida foi feita assim mesmo, pelas encostas, com homens que se colocavam em pontos estratégicos, baldeando crianças e garantindo que em algum momento tocaríamos chão firme.
Foi naquele ano que a mãe decidiu que não mais nos levaria para a festa da Padroeira da Cidade. Bendito ano! Era a liberdade, enfim, para viver todos os dias 8 de setembro num compromisso único com a nossa amarelinha!
Mas havia uma condição para essa liberdade: subir o Monte Serrate todos os anos, na semana das festas, num outro dia que não fosse o 8 de setembro. A mãe precisava traduzir sua fé com atos e hoje entendo que ao nos levar com ela cumpria-se, no seu íntimo e nos seus valores, que o ser humano precisava acreditar.
E ela acreditava. Acho que pedia por nós e talvez por isso levava as velas para acender nos nichos e outras, da altura de cada um dos três filhos, para acender lá em cima, na sala das oferendas. Aquela sala era um mundo misterioso para as nossas cabeças habitadas por Branca de Neve, Mandrake, o Fantasma e a noiva Diana que ele nunca pedia em casamento. Naquele lugar havia tudo o que era coisa e uma vez a mãe levou até um quadro pintado a óleo, daqueles que as famílias tinham na sala da casa, dividindo parede com Nossa Senhora Aparecida. Cada ano que a gente voltava, lá estava o quadro (sem a moldura), com a imagem dos três filhos adivinhando as preces silenciosas que ali se desenrolavam.
Hoje, a mãe já não tem muito fôlego para subir as escadarias a pé e vez por outra é que ela se anima a pegar o bondinho para chegar ao Santuário do Monte Serrat. Nós também voltamos, acho que muito mais para observar lá de cima essa terra tão querida que é o berço natal, do que propriamente para rezar. A mãe, não. Reza e pede todos os dias, acende as velas quando acha que as preces carecem de mais luz e mantém seu santuário particular, ao alcance dos olhos e da crença “no divino manto sobre nossas cabeças”, como diz ela nas horas em que percebe que precisamos de conforto e da proteção que lhe escapa das mãos.
O jeito como a mãe nos ensinava a taboada a gente já não lembra mais, mas a lição de fé que nos passou, percebo hoje, tem sido a melhor herança. Observando a vida acontecer em nossas vidas, sendo solicitados a participar dela com nosso suor e nossas limitações, acabamos aprendendo que somos senhores do próprio destino, a acreditar em nós a partir de nós.
Mas há momentos, há circunstâncias, em que a gente se sente jogada no mundo, naquele atoleiro “onde filho chora e mãe não escuta”, como se diz no popular. E é então que sobrevive aquele que tem algo mais para acreditar. Não importa que nome tenha o seu Deus ou os seus santos, e sim a fé que Alguém nos ouve. A fé que pode se traduzir, inclusive, numa vela acesa, da nossa altura ou do tamanho do nosso medo. A fé em que, ainda que tenhamos perdido nosso referencial de eu, conservamos lá dentro a certeza de que há um divino manto sobre nossas cabeças.