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Na calçada caiu uma bomba

Era difícil atinar com aquele grito de socorro rompendo a noite, abrindo uma fenda na plasticidade quase hipnótica de Kurosawa na tela da televisão. Alguém gritava por socorro. Era uma mulher. Era uma mulher desesperada, paralisando a Rapsódia em Agosto, as lembranças de Nagasaki, as memórias do mestre gravadas no celuloide. Pedia socorro, pedia pelo amor de Deus.

As janelas se encheram de gente e toda a gente viu o homem ensandecido, enchendo de tapas a cara da mulher loira, enchendo de pavor a filha que lhe segurava a barra do vestido. Os gritos de ambos chegavam a todos os andares e toda a gente ficou sabendo o que o homem pensava dela. Que era vagabunda, que era piranha, que era a infiel que o tinha traído. E que ele não a queria nunca mais.

Alguns correram, saíram de suas esquinas, largaram o fim de domingo e foram até lá, como justiceiros destemidos que não estão nem aí para o ditado “briga de marido e mulher…” Mas ele era cabra-macho, desses que batem em mulher no meio da rua e não seria qualquer um que iria instalar o deixa disso.

Nas janelas de todos os andares se fez um silêncio absoluto, como se qualquer movimento fosse desviar a fúria daquele homem para as sacadas na penumbra. Na rua, impotentes e assustadas, as pessoas fizeram um cinturão em torno do casal e na arena criada no asfalto ficou derramada a história de um homem e uma mulher que não foram felizes para sempre.

Com tantos espectadores, o macho conteve os punhos. Mas a língua continuava solta, machucando, manchando, aviltando, injuriando quem um dia ele amou. Amou? Amava? Agarrada ao poste, a mulher loira se defendia, desmentia na via pública o que só caberia entre quatro paredes, como nas letras de música. Não, era mentira. Não traíra, não, mas quem não atiraria a primeira pedra na fêmea exposta como bandida, condenada porque era mulher? Quem?

Por entre o franzido do vestido da mulher loira, a filha se escondia, chamava pela mãe. De que jeito amará aquela menina, quando o tempo fizer maduro seu coração e o corpo precisar de um outro para abraçar? Em qual banco ficará arquivada a noite de domingo em que o Fantástico não mostrou aquele show da vida? A sutileza das relações, com seus extremos de tapas e beijos, estava ali na calçada, atraindo público como um teatro mambembe em que os atores não recebem nem aplausos.

Kurosawa, com uma melancolia traduzida na saudade da avó viúva da bomba atômica, não conseguia vencer a poesia concreta da rua. Estava na tela sem som porque lá fora um homem gritava uma outra viuvez, aquela do amor matado e agora sepultado à vista de todos, de gente estranha que não choraria por ele. E nem por ela. Gente que olhava e se perguntava o que faria no lugar do homem e da mulher que não foram felizes para sempre.

Até parecia o fim do mundo o que estava acontecendo com aqueles dois. Quem sabe se chamasse o homem para ver Kurosawa, quem sabe se contasse a ele como as pessoas perderam seus amores naquele  agosto tão distante, quem sabe…

Era maio, não havia guerra, o cenário tinha o tom urbano e a bomba caíra em cima de duas cabeças somente. Atingidos pelos estilhaços, os pares mudos abandonaram as janelas, a platéia da calçada foi levar a história para casa e todos naquela noite sentiram medo da sombra de seus amores.

A avó da história de Kurosawa, correndo sob a chuva, tinha medo apenas da bomba que ia levar embora o seu amor, que há tanto tempo não morrera.

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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