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Quer viver até os 90? Então, se cuide e leia “Mortais”

O que é que realmente importa no final? Sim, aquele final mesmo que você está pensando, aquele que dá por encerrada a jornada aqui no planeta e nos leva, quem sabe, para onde o espírito merecer. Claro que isso depende da crença de cada um, mas todo mundo sonha em deixar esta vida com todas as faturas quitadas e atravessar o portal da eternidade com leveza, sem as malas sem alça que a vida nos deu para carregar. Mas… e até que esse momento chegue, como vamos nos comportar?

A pergunta com que iniciei esse texto é crucial e ela vem martelando na minha cabeça desde que terminei de ler o livro Mortais, do médico Atul Gawande, norte-americano de origem indiana, e que nos coloca frente a um espelho que todos temos dificuldade de encarar: o envelhecimento e a morte. Discussão sobre esses temas não atrai plateia, mas eu me pergunto qual o sentido de fazer de conta que somos imortais?

Gawande vai costurando as palavras sem dó, sem piedade… mas com alma. Ah, e quando tem alma a gente embarca e até se arrisca nesse trem-fantasma de tantos sustos que é a velhice. Quer ver só?

Como reagir bem ante um capítulo que chama “Caindo aos pedaços” e onde se fica sabendo, por exemplo, que, com a idade, o esmalte dos dentes (substância mais resistente do corpo humano) vai se desgastando, que as gengivas tendem a se infalmar e a se retrair, “expondo-lhes a base, deixando-os instáveis e alongando sua aparência, especialmente os de baixo”?

Ou que os cabelos ficam grisalhos porque na velhice perdemos células de pigmentação que lhe conferem sua cor. Ou que ganhamos manchas na pele, perdemos força nos olhos e sentimos inchaço em torno das articulações da mão, que ainda sofre por “uma redução na amplitude do movimento do pulso, menor firmeza ao segurar objetos e dor”.

Não, não desista de ler o livro só por causa dessa introdução que dei ao assunto. Vá em frente nas 260 páginas de Mortais, pois caminhamos para uma velhice que se prolonga e se prolonga e… se tudo der certo, do jeito que a gente sonha, vamos ter 90 velinhas no bolo, apesar do diabetes, do colesterol, dos tremores, da dentadura, da artrose… Pois, como diz a médica especialista em cuidados paliativos, Ana Cláudia Quintana Arantes, autora do livro A morte é um dia que vale a pena viver: “O único jeito de não passar por tudo isso é morrer antes”. Então, se quem morre de véspera é o peru, vamos falar desse nosso amanhã?

É o que Atul Gawande faz com esse brilhante trabalho, ele mesmo reconhecendo quão despreparado estava para lidar com seus pacientes (ele é cirurgião no Brigham and Women’s Hospital, em Boston) no confronto com a morte, dificuldade que se agigantou quando teve que lidar com a fragilidade do próprio pai. Prolongar a vida dele até quando fosse clinicamente possível ou só enquanto tivesse qualidade de vida? O que realmente importa no final, questiona Gawande, nos convidando também a esta reflexão.

Para ele, a medicina se foca em manter os pacientes vivos a qualquer preço e não usa meias palavras para deixar isso claro. “A maneira como tomamos decisões na medicina fracassou de maneira tão espetacular que chegamos a um ponto em que de forma ativa inflingimos danos aos pacientes simplesmente para evitar enfrentar a questão da mortalidade”.

Ainda bem que nem tudo está perdido. Essa mesma medicina que estica a corda até onde não aguentamos mais é a mesma que hoje forma geriatras e equipes afinadas com cuidados paliativos, uma abordagem que ganha cada vez mais espaço nas discussões médicas e nos círculos das famílias. É a oportunidade que temos, ainda que muito doentes, de sermos atendidos com dignidade, mantendo nossa autoestima, nos dando autonomia para não sermos alijados da nossa vida antes do tempo.

Essa discussão sobre o que realmente importa no final está apenas começando e só vai avançar se trocarmos comportamentos fantasiosos (do tipo “comigo está tudo bem”, “minha saúde é de ferro”, “meu pai morreu dormindo”, “meus filhos vão cuidar de mim” e outros) por uma postura responsável e amorosa por nós mesmos.

Vivemos muito mais do que os súditos do Império Romano, que as pesquisas sugerem que tinham uma expectativa de vida de 28 anos. Mas precisamos, desde muito cedo, conversar (com filhos, parentes, médicos, advogados, cuidadores) sobre o que realmente importa no final. Podemos usufruir do melhor que a medicina nos dá para uma boa vida, mas temos o compromisso, conosco, de escolher quais são nossas prioridades e como vamos moldar nossas histórias, que cores lhes queremos dar e com quanto amor, respeito e serenidade podemos nos despedir delas.

*Imagens Pixabay

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Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

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