Encontro (des)marcado
O Edgar não me saiu da cabeça naquela noite de segunda-feira, cheia de chuva e frio. Eu o conhecera à tarde, quando as calçadas ainda estavam secas e ele podia catar do lixo o seu ganha-pão e o que poderia ser seu objeto de desejo (insatisfeito): garrafas vazias de Sprite e Coca Cola e caixas de pizza engorduradas, vestígios do que deve ter sido a noite de domingo em alguma casa que não era a do Edgar.
Na verdade, quem se aproximou primeiro foi Alexandre, com o pedido que se repete na boca de tantos meninos como ele.
– Tia, me dá dinheiro para comprar um pão?
Quanto eu precisaria dar para aplacar a minha consciência?
Como Alexandre disse que aquele dinheiro era só dele, o jeito foi dar mais um pouco para sossegar o olhar suplicante de Edgar. Com os cruzeiros apertados em uma das mãos, saíram com passo apressado, levando o produto da sua coleta até um grupo de carrinheiros que vasculhava o lixo em outras portas.
Largaram o vazio das caixas e garrafas no carrinho que fazia sentinela no meio da quadra. Rapidinho, Edgar entrou na padaria e quando saiu exibiu para o o seu troféu: dois pãezinhos.
– Você gosta de doce de banana?, pergunto.
Com certeza, disseram seus olhos arregalados. Eu acabara de ganhar um pote cheio de bananas carameladas, doce feito em casa e me dado com amor. Transferi o doce e o amor para duas xícaras grandes e levei para aquele Edgar encarapitado em cima do muro, escondido pela cerca-viva e não mais interessado no pão que repousava ao seu lado e destinado a uma outra hora de fome.
– Cadê o outro para comer também o doce?
– Ele não gosta, tia! Não precisa dar para ele, não. Pode deixar que eu como.
_- Será que ele não gosta mesmo? Isso está me cheirando a conversa fiada…
– Juro, tia, juro. Ele cospe no doce, não precisa dar pra ele.
Contemplando o prazer com que ele se deliciava, Edgar era só uma criança. Um menino de 7 anos (custou a encontrar todos os dedos para me dizer a idade, mas foi categórico), com tênis azul-turquesa e os restos de uma calça vermelha, e um casaquinho preto, curto e roto. Mas ele era mais.
– Sou catador de papel. Eu cato e levo pro meu pai, que está lá no carrinho, com o meu tio.
– E onde vocês vendem?
– No ferro-velho da Senador Dantas.
– Onde você mora?
– No ferro-velho da Senador Dantas.
– Perguntei aonde você mora, aonde você dorme?
– Então, não entendeu? No ferro-velho da Senador Dantas!, disse, impaciente. Estava a fim de conversar e entre uma colherada e outra do doce de banana, foi contando sua breve história, em quase nada diferente de tantas outras que eu já ouvira.
– Minha mãe arrumou um cara. Sabe, né? Ficou morando com um outro e aí não me quis mais. Eu tive que ficar com meu pai e agora eu cato papel com ele. Só o Alexandre que ficou com ela, mas agora ela também não quer mais ele. Os outros estão com a minha tia. Alexandre chega no meio da conversa e descobre o doce de banana sendo devorado.
– Seu irmão disse que você não gostava de doce de banana.
– Mentira, eu gosto! Gosto, sim!
– É nada, tu cospe no doce!
– Eu não cóspo, eu não cóspo! (sic)
Convencido de que poderia dar um pouco para o irmão, Edgar aceita dividir a segunda xícara e Alexandre sossega as lombrigas com um pedaço de pão e a banana caramelada. Pulam do muro, ganham a rua e vão desaparecendo. Edgar ainda promete que quando passar por ali outra vez virá me ver.
Mas eu já sei. Qualquer outra vez, nem eu e nem ele estaremos, de novo, no mesmo lugar.