Ana e a semente
Na terra de Ana não havia árvore, nem arbusto, nem folha. Na terra de Ana nem terra havia: só chão.
Ana caminhava pelo chão sem início ou fim, chão cismado em tudo ser. Ia apenas por ir, pois lugar algum havia – ausência de destino, carência de flor. O único som vinha dos próprios pés nus arrastando-se pelo chão cinzento, no ofício de levar Ana às costas, para onde Ana fosse, se ela soubesse. O resto, silêncio. Na terra de Ana tampouco havia luz, apenas os olhos de Ana, e apenas para enxergar que nada havia de ver e de ser visto.
Mas um dia Ana, em seu caminhar por nada, encontrou a semente. Era uma forma ovalada de verde pálido e inerte, como se de outro mundo, sem pertencimento ao chão cor de chumbo onde jazia sem força ou frescor. Abaixou-se, pegou-a, que lhe ficou a dançar na palma da mão em um reluzir cálido na parecença de felicidade, se a semente o pudesse sentir, mas era nos olhos de Ana que nascia, em viço novo.
Naquele mundo, Ana desconhecia a medida das coisas no por dentro do peito, assim, descompreendeu de si. Por instinto, temia fechar a mão e esmagar a semente. Trazia a mão espalmada, a pequena figura verde no bailar embalado dos passos de Ana, agora desperta para uma urgência surgida como regato tímido que brota da terra: a procura do lugar onde seria o lugar da semente.
Ana caminhou por muitos dias e noites feitos de igual imobilidade, pois que nem claro ou escuro, apenas a mesma solidão. Mas se antes havia só essa massa de vazios, naquele mundo a semente talhou uma nesga à esperança, e Ana aprendeu então a chorar, ao quase convencer-se de que jamais encontraria o lugar da semente, de que ali semente que brota seria só em paragem de sonho bem sonhado. Tateou em si outra novidade feita de semente, a tristeza, por ela deixou-se levar, mergulhou e sentiu-se enredada em um oceano de tons difusos e opacos. Nadou, até realizar-se outra Ana. Foi de repente: sentiu-se cor, arco-íris. E se fosse o contrário? Se o sonho fosse o lugar? Então à semente qualquer pouso sonhado seria real.
Ana agachou-se, recurvou-se sobre si. A mão livre, tocou-a no chão árido, encrespado, rude. Depositou com cuidado a semente ao pé de si e cravou as unhas das duas mãos na superfície áspera. O suor escorreu-lhe do rosto, o sangue brotou-lhe das unhas e dos dedos, e inundou a pequena cova que conseguiu rasgar sob o jugo da dor. As mãos trêmulas, ambas, de modo que nem Ana entendeu se foi a direita ou a esquerda que primeiro ergueu a semente e a depositou com placidez de mãe no leito eterno, rubro pela seiva de seu corpo. Em seguida, cobriu a cova com os resquícios livres daquele chão concreto, deitou-se ao lado, arfante, e fechou os olhos para imaginar os mundos que só de sonhos se pode erguer.
*Por Ronaldo Vaio é jornalista