Anne vive
Por Giselle Marques*
Todo mundo tem uma história para contar. Quando resolvi encenar a história de Anne Frank no teatro, criando o Refúgio de Anne, me dei conta de que nossas escolhas são sempre subjetivas, mas que somos levados por algo que nos comove, ainda que inconscientemente. Não escolhi Anne Frank por acaso, fui capturada pela conhecida história da menina judia, confinada com sua família em um anexo secreto, durante a perseguição nazista. E, apesar de não ser judia, pude me imaginar no lugar dela.
Toda história tem, ao menos, dois lados. Se o confinamento da família Frank durante o período do Holocausto nos fala sobre dor e morte, intolerância às diferenças e preconceitos, ele também nos fala sobre os fortes laços de amor e de solidariedade entre as pessoas. Se não fosse pela ajuda dos que levavam, escondidos, alimento, esperança e calor humano à família, eles jamais teriam sobrevivido confinados durante 2 anos e 29 dias.
Pensar em Anne Frank é ultrapassar a questão do Holocausto, enquanto fato histórico. Existem outras formas de exclusão, ainda que com outras dimensões. Existem outras “Annes” cujo futuro foi ou será interrompido. E trazê-la para nossos dias é lutar contra a discriminação, a violência, o racismo, a xenofobia, a intolerância e o preconceito, ainda tão presentes. É o exercício diário de respeitar e de aceitar as diferenças, quando nos colocamos no lugar do outro. Porque dor é sempre dor, não importa em qual língua ela seja proferida. Por mais dilacerante que seja, nossa dor será sempre “a nossa dor” em busca de um sentido. E, ao tentar compreender a dor do outro, não estaremos mais falando apenas de Anne Frank, mas das crianças refugiadas de hoje da Europa ou da África, do bullying nas escolas, dos perversos desafios da “Baleia Azul” na internet, das chacinas nas periferias, das violências explícitas estampadas nos jornais, banalizadas ou psicologicamente veladas dentro das próprias famílias e de tantas outras questões, aparentemente insolúveis, sejam elas econômicas, políticas ou religiosas.
Anne Frank desejava a liberdade. Mas, somos nós que, diante do excesso de liberdade e sem saber o que fazer com ela, nos tornamos os verdadeiros prisioneiros. Confiantes em nossa delirante onipotência sem limites, nos tornamos cada vez mais vulneráveis em um mundo violentamente competitivo. Vivemos acorrentados aos padrões impostos, o que nos torna reféns do desejo do outro. Cada vez mais invisíveis, solitários, cegos, distantes de nossa singularidade e de nossa própria essência, vamos sobrevivendo a uma cultura espetaculosa sem nenhuma perspectiva.
Durante o confinamento, Anne se refugiava em sua própria fantasia através das fotos de cinema que colecionava e no diário que escrevia. Ela tinha um sonho: terminada a guerra, se tornaria escritora e seria motivo de alegria e de utilidade para os que viviam a sua volta e para os que não a conheciam.
O campo de concentração de Bergen Belsen e o tifo aniquilaram seu sonho de se tornar uma escritora. Mas, seu pai, Otto Frank, único sobrevivente da família, recebeu o diário deixado pela filha das mãos de sua secretária e o publicou, após o término da guerra. Um dos maiores sucessos editoriais, O Diário de Anne Frank foi considerado um dos livros mais importantes do século XX, tendo sido traduzido para 67 idiomas.
Sem Anne, eu jamais teria tido a oportunidade de falar sobre superação, amor, solidariedade e sobre tantos exemplos de vida que jamais deveriam ser esquecidos. Mesmo vivendo em condições extremas de confinamento, ela continuou acreditando na bondade humana. Que assim seja, Anne. Que possamos acreditar que existe sempre uma saída, que somos seres únicos, humanos e falíveis, que continuemos apostando em nossos sonhos, sem nunca perder de vista quem está a nossa volta. Que a paz não seja apenas um conceito abstrato, mas que possa estar presente na construção de nossos pequenos gestos cotidianos. E que sejamos, acima de tudo, intolerantes com a intolerância, seja ela por qual motivo for.
*Giselle é atriz e tem levado a história de Anne Frank a escolas e outros espaços culturais