Blog

O lado ímpar das histórias

Quem já caminhou um tanto por essa vida aprendeu que toda história tem mais que um lado. Tem, pelo menos, um outro lado e este, dependendo do tema, pode ser o lado do inimigo.

Essa história, por exemplo, começa do lado de fora de uma cerca-viva de coroa-de-cristo, tão crescida que ninguém se atreveria a chegar mais perto, nem que fosse para descobrir, do outro lado, o paraíso. Sem ser, exatamente, um Jardim do Éden, o quintal tem o suficiente para matar a fome inocente de qualquer cristão: pés de mexerica, de laranja, de jaboticaba, de limão. E também de tomate, rúcula, alface, cenoura. E galinhas, frangos e perus, para os que não sofrem os mal-estares das convicções vegetarianas.

O dono do quintal e de mais 15 mil hectares de terra onde a agropecuária é a principal atividade é um homem de 84 anos de idade. No entanto, se depender de admitir que a história tem dois lados, ele terá todos os argumentos para não validar qualquer outra versão que não a sua. No último ano, a sua Vitória do Ivinhema, longe 350 quilômetros de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, foi invadida três vezes pelo MST. A ponte da fazenda foi derrubada, a vegetação foi queimada em longos trechos, algumas criações foram mortas e se tudo isso não bastasse, a sua propriedade foi considerada produtiva nas duas análises do Incra.

Por que, então, aquela gente não vai embora, brigar por terras em outras terras? Caberia, até, outra pergunta: por que tem que ser assim? Bom, não tem que ser assim, mas este é um lado da história que ninguém vai tratar aqui, porque é assunto para outra conversa.

 

Jacintho, o dono da Ivinhema e de mais umas 15 fazendas por ali, senta-se no banco que tem encosto com cabeças de cavalo esculpidas na madeira e cruza as pernas. Com os óculos grandes tem um jeito de intelectual, do tipo que conhece e ama a natureza. Põe os olhos azuis na direção do infinito, manda o pessoal se servir do suco feito com as mexericas do quintal e se põe na prosa. Quer saber um pouco de cada um, mas quer também dizer o que sabe daquela gente que entrou na sua terra sem pedir licença e com quem ele não pode, sequer, conversar.

Não que ele não queira, mas como se aproximar de pessoas que vivem armadas com foices, facões, pedaços de pau e acham que são donas de qualquer palmo de terra que a mão alcança? Aquelas, onde acampou o 17 de Abril, são do seu Jacintho e por isso ele está pedindo socorro aos governantes. E por isso sentam-se naquela varanda alguns lados dessa história: Jacintho, governo federal, governo do Mato Grosso do Sul, Terrasul e jornalistas, claro, que esse é um assunto que pode render chamada de primeira. Só falta o segmento armado, ostensivamente armado, mas também isso fica para depois.

Na opinião do fazendeiro, pouca (nenhuma?) chance de dividir o latifúndio. Dói muito, para ele, ver o que aquelas pessoas fizeram nas suas terras, invadindo, desrespeitando, queimando e destruindo. Elas assustam porque, segundo ele, vêm para tomar e não para negociar. E, ninguém pode negar, eis aí uma verdade. E é justamente isso que o seu Jacintho não sabe como administrar.

O cheiro do churrasco leva a conversa em outra direção e a hora do almoço é preenchida com a fartura que aquelas terras produzem. Além do churrasco – claro que o gado é dali mesmo – tem frango do quintal, verduras e legumes e todo suco do mundo, pra gente nunca mais esquecer aquele gosto bom. O conjunto daquele cenário é o que se pode chamar de lado perfeito dessa história: tem casa, comida, água, plantação, perfume de flores. Tem qualidade de vida e isso é tudo o que se quer, em qualquer tempo da vida.

Além da cerca-viva, muito além, mora uma gente que tem zero de qualidade de vida. Para chegar até lá, é preciso vencer muito chão numa estrada de terra, equilibrar-se nos troncos soltos da ponte destruída e embarcar todo mundo num caminhão que espera do outro lado. Outro tanto de chão a percorrer e nem dá para acreditar que mesmo depois de tanto vento na cara a gente ainda esteja nas mesmas terras do seu Jacintho. A pergunta, portanto, surge naturalmente: por que alguém precisaria de tanto? Ou ainda: e por que não negociar um pedacinho para instalar os acampados?

Talvez a oferta não seja boa, talvez não valha a pena… Depois, tem a questão desses novos vizinhos, pessoas que seu Jacintho nunca vai convidar para tomar suco de mexerica. Aos 84 anos, quem vai querer arranjar sarna pra se coçar, ainda mais se é chegada a hora de apreciar o pôr do sol por entre as buganvílias vermelhas? De repente, o filme fica branco e preto, coberto de terra vermelha. O acampamento é aquilo que, até então, só aparecia no noticiário do Jornal Nacional. Agora, não: é ao vivo e sem cores. Correm mulheres e crianças de todos os lados, como bichos soltos para o ataque e ninguém duvida que um passo em falso e… pode ser a gota d’ água! Por isso, do lado de cá da forquilha que é a entrada do acampamento, ninguém dá um passo. Acho que ninguém nem respira.

O rojão explode no ar e é a senha para chamar o acampamento inteiro. Aprumam-se à nossa frente como sentinelas de um reino onde todos são reis. Como cetro, portam foices e facões enferrujados, a rasparem as lâminas umas nas outras, arrepiando quem está do lado de cá. Gritam palavras de ordem, encaram com altivez e ódio e cumprem um ritual que ninguém se atreve a interromper.

O Incra, por que você mentiu? Fez tanta promessa e não cumpriu!

Fazemos revolução com a transformação!

Queremos terra, não queremos guerra!

Educação, direito da Nação!

Esse é o nosso país, essa é a nossa bandeira 

É por amor a essa pátria brasileira 

Que a gente segue esse lema!

 

Foto: Reprodução MST

Agora, que os visitantes já ouviram tudo sem piar, a porta do reino se abre e também um caminho entre as foices e os facões, até chegar a uma clareira entre as cabanas. Os do governo, como passam a ser chamados todos os estranhos ao 17 de Abril, se apresentam e o companheiro Pimenta, de Brasília, tem permissão para falar. A platéia faz um cerco apertado e os cheiros daquelas pessoas derretendo sob o sol, sem um Palmolive para amenizar os dias sem banho, parecem apertar mais ainda o minúsculo círculo que nos coube como plataforma.

O discurso não é uma retórica. De verdade, aquele mensageiro de Brasília acredita no que diz e quer encontrar um caminho para a reforma agrária no Mato Grosso do Sul, uma ação que não andou tão bem no último ano. Vaia estrondosa, foices que se agitam e cerco que se aperta. Sabiamente, o companheiro não contesta, não revida e até concorda, dizendo que a reação é legítima e que sempre se apoiou o movimento. E deixa claro que não está ali para fazer promessas, mas para encontrar soluções. No entanto – e isso também fica claro –, é preciso que o movimento faça a sua parte e desocupe terras produtivas, pois as famílias só serão assentadas em terras improdutivas. Um jogo de transparência de ambas as partes, avisa o companheiro Pimenta. O Incra/MS reforça o que foi dito e também se compromete a trazer uma nova fase para a região. Outro tanto de vaias…

Valdo é como chamam Ariovaldo. Não tem mais que 25 anos, mas dá as cartas como mestre. Teima que a fazenda não deu produtiva, rebate dizendo que outras pessoas já passaram por lá “pra conhecer a realidade também, mas o sistema implantado é que faz a gente desacreditar”. Lembra que o movimento tem famílias acampadas ali deste 97 e para eles não interessa quem vai assentar, desde que se cumpra o prometido. Até porque “nós véve com a realidade; nós não véve com a ilusão”. E acaba entregando: “então, a gente vai ocupar a produtiva para eles mostrarem para nós a improdutiva”. E provocando: “a pressa é de vocês, porque o governo só faz reforma agrária quando nós entramos”.

Já ninguém respira mais. O cerco, o sol, o cheiro, a terra vermelha, a tensão…

Só mesmo uma dona Júlia para fazer descer um pano rápido. Sessenta anos, 12 filhos, e de viver tristeza em cima de tristeza é que ela não acredita mais em ninguém.  Nos dias piores – e quase sempre eles foram piores – ela alimentou os filhos com água de sal. Hoje, vive no acampamento num barraco coberto com capim, porque lona não tem.

Só acreditaria em alguém “se Jesus colocasse uma letra na testa de quem estivesse falando a verdade. Como não dá para Ele fazer isso, eu vou rezar para Jesus dar força para vocês tirarem nós do sofrimento”.

Amém.

 

contato@veraleon.com.br

Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

Siga-me: