Blog

A dor e a delícia de envelhecer

Quando Mary acorda no quarto de um hotel, ao lado do marido, Adam, e não lembra como foi parar ali, ela desperta simbolicamente para uma realidade que está longe de ser recebida com complacência: a velhice, esta temível companheira que não pede permissão para se instalar. Num dia qualquer de nossas vidas, o espelho mostra uma medida do tempo que,até então, existia somente para além de nós. E o inferno, ao contrário do que ironizou Jean Paul Sartre, já não são os outros. Somos nós. Tratar tudo isso com humor é o segredo que a diretora Julie Gavras alcançou no seu Late Bloomers  (algo como desabrochar tardio e que aqui recebeu o título O Amor Não Tem Fim).

Com humor e, faça-se justiça, com verdade também, ao escolher Isabella Rossellini para desfilar, com majestade e excepcional beleza, sua Mary com as rugas, o sobrepeso e a pele que sobra no pescoço (de todos nós) aos 60 anos. Nesse pacote que ela não pode devolver (e nem é isso que se quer), ainda tem uns 30 e tantos anos de casamento, filhos ocupados com suas vidas, netos entediados e uma desconfiança que, a se confirmar, pode ser uma punhalada: por mais audaciosa que seja nossa cruzada de pernas e por mais que balancemos os nossos quadris, nenhum homem vira o pescoço para nos buscar com olhos gulosos.

Mas nem tudo está perdido, deixa claro o desenrolar de Late Bloomers, ao brindar Mary com uma cantada inequívoca do dono da academia onde ela sofre na hidroginástica. “Você salvou a minha vida”,responde aquele mulherão ao comentário insinuante do rapaz, resgatando nossa heroína da invisibilidade. Adam (bem vivido por um William Hurt honesto nos seus 60), por sua vez, também é confrontado com o tempo que passou. Arquiteto premiado pelo conjunto da obra, resiste a colocar na prancheta o projeto de um lar para idosos (que ele traduz como “um depósito de zumbis com incontinência urinária”), e reage, cáustico, à orientação dos seus parceiros no negócio. Como se não bastasse tamanha pressão, chega em casa e encontra as “providências” que Mary tomou para ambos se acomodarem na nova condição: telefone com teclas à prova de óculos (números imensos, claro), barras de segurança na banheira e cama que levanta a cabeceira, do jeitinho daquelas de hospital.

Mary não se encaixa no mundo jovem da  hidroginástica, nem no programa de voluntários tocado por uma moçada que nem imagina o que tenha sido o movimento feminista. E Adam, que se alia a um grupo de jovens arquitetos no projeto de um museu, não se encaixa no cenário que Mary desenha. O que fazer nesse agora, quando “somos só nós dois”, e a percepção da realidade é tão pessoal, tão incompatível, tão ameaçadora? Melhor dar um tempo, tentar saber o que se tornaram individualmente esse homem e essa mulher, ainda que isso cause um abalo nas convicções dos filhos do casal, que temem que os pais engrossem as estatísticas dos que se separam aos 60 anos. Bobinhos! Antes, não se confiava em ninguém com mais de 30. Hoje, melhor não duvidar do que são capazes os sessentões.

Claro que tudo em sua medida e harmoniosamente. O amigo de Adam, o Richard, dá uma aula do que não pode: se tiver marca-passo, nada de Viagra. Pode-se fazer BUM! E reserve um tempo, antes de dormir, para tirar “os acessórios”: a palmilha para dar equilíbrio à coluna, o aparelho auditivo, sem contar o que é fixo, como a prótese no joelho, o quadril de plástico e o implante dentário. “Envelhecer é pra macho”, sentencia Richard.

Enquanto Adam resgata do baú um casaco de couro e um velho jeans, Mary corta os cabelos, desiste da hidro, começa a nadar e cria um programa de planejamento pré-escolar. Eles buscam se inserir em uma realidade onde, se não há aplausos, que pelo menos não haja censura. Ou, melhor dizendo, onde se experimente a liberdade de cada um saber a dor e a delícia de ser o que é. Transgredir, subverter a ordem estabelecida pelas cartilhas da chamada terceira idade não livram ninguém (da dor) das rugas e da tal disfunção erétil, entre outros acompanhantes da velhice.Mas autoriza que nos apropriemos das nossas (delícias) escolhas. Que pode ser, até, voltar para um amor, conhecido, sim, mas com toda a chance de ser muito novo.

contato@veraleon.com.br

Repórter especial em jornais santistas e assessora de imprensa em São Paulo e Brasília, nas equipes de ministros e secretários de Estado. Especialista em Psicologia Analítica Junguiana e Constelação Familiar.

Siga-me: