O Alzheimer, o amor, o tempo que não volta…
O vô Emílio quer encontrar um amor do passado e precisa da ajuda de Blanca, a neta bem espertinha
Quando assisti ao filme Para sempre Alice, em 2015, assumi o medo, até então inconfesso, de me perder de todas que sou. A Alice do filme, na magistral interpretação de Julianne Moore, dá de cara com o Alzheimer na plenitude da vida como professora universitária, conferencista e outros brilhos de uma vida intelectual produtiva, além de ser um exemplo na cultura do bem-estar, com suas corridas diárias e sua inseparável garrafinha de água.
Esse tal de Alzheimer parece que chega meio de repente, como barata voadora em noite de verão, e nos joga contra uma parede que se mostrará cada vez mais intransponível. Foi o que pensei quando assisti Viver duas vezes, filme espanhol (Netflix) da diretora Maria Ripoll, que traz o assunto à tona, sem o impacto de Alice, mas com elementos bem parecidos com minha heroína de 2015. Emílio (Oscar Martínez) é professor universitário aposentado, referência como mestre de matemática, vive sozinho em casa, é pai de Julia (Inma Cuesta) e avô de Blanca, e dá conta das suas circunstâncias. Ou seja, quem diria que aquele homem teria Alzheimer? Em que esconderijo do cérebro esse fantasma vai montando sua armadilha?
Sim, tudo vai bem com Emílio até que… o Alzheimer invade sua rotina, deixa-o perplexo, indignado por ter que responder às perguntas da médica, e o empurra para pegar no tempo a promessa de amor que ele, lá na adolescência, deixou escapar. Entre o amor por Margarita, que lhe acenava com um mundo de romance e leveza, e o estudo da matemática, ele preferiu os números. Agora, nem o cálculo mais banal é fácil de solucionar. E se aquelas lembranças tão caras, se o rosto doce e belo de Margarita se perderem nesse emaranhado de fios que vão se desligando no cérebro de Emílio, se isso virar nada, quem será Emílio sem Margarita?
Com a cumplicidade da neta Blanca (uma estupenda criação de Mafalda Carbonell), que tem resposta para tudo e ainda usa como ninguém o celular e as redes sociais para localizar Margarita, os dois se colocam na estrada, com a missão de encontrar a amada perdida do avô. Mas não vão muito longe, claro, até que a resistente Julia (a filha cheia de paciência com ele, mas que se recusa a trair a memória da mãe) abraça a causa do pai e a família inteira embarca na aventura de encontrar Margarita. Encontram. E que encontro! Presa em sua própria teia do tempo ou da inexistência dele, a mulher sentada na varanda de casa tem o olhar no vazio, mesmo quando encontra os olhos de Emílio.
O que, realmente, se perde quando abrimos mão dos apelos da alma para seguir o chamado do ego? Ah, se a gente soubesse! Emílio esgotou o tempo pensando em Margarita, casou, foi pai, ficou viúvo, aposentou-se e, ao começar a perder-se de si mesmo, decide ir atrás do que não viveu, como se o reencontro com Margarita o redimisse das escolhas feitas e da apatia ante o chamado do coração.
Quem sou eu para falar de Alzheimer, quem sou eu? Mas posso falar do medo que tenho de perder-me de mim. Talvez aconteça um dia… amanhã, quem sabe, eu não saiba quem sou e as memórias mais caras sejam brumas densas, mas, até lá quero quitar minhas faturas, quero olhar para trás e ter a certeza de que visitei todos os mundos. Se vou reencontrar amores, lá na frente, quem sabe seja por generosidade do acaso…